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O escritório da clínica está localizado num prédio de espelhos vermelhos. No salão principal, há algumas lojas e uma exposição de arte com desenhos de corpos masculinos e cores vibrantes. Uma mulher loira numa cadeira de couro dá informações. Carlos, seu marido, parece interessado.
“Não se esqueça de mencionar suas dores de cabeça”, diz Marieta.
“Não há nada de errado comigo,” ele responde, tenso.
“Mesmo assim, você tem que falar,” ela insiste.
“Eu vi essas sessões na TV.”
“Ah, bom?”
“Só preciso falar sobre meus pais.”
“Não banalize. Já falamos disso.”
“Continuo sem saber o que estou fazendo aqui.”
“Você está muito nervoso, Carlos.”
Na verdade, é um acúmulo de fatores. Nos últimos meses, vem se descontrolando com pequenas coisas; longas filas, barulho, lixo, e especialmente o relacionamento com a esposa. O caso mais recente tinha sido com Jefferson, o novo amigo de Marieta.
Carlos não se sente à vontade em sua presença e por isso implica, fazendo piadas com sua sexualidade. Preocupada, a esposa chama o sogro, que recomenda um psicólogo.
Contrariado, e depois de muita insistência, Carlos aceita ir. Ansioso nas últimas semanas, decide tirar proveito da situação para conseguir uma receita qualquer de calmantes para reduzir seus sintomas.
O número de pessoas esperando perto do elevador é grande, e o tapete fofo do corredor faz Carlos espirrar. Ele tenta não se irritar com a poeira ou o barulho. O pé direto é alto, e as luzes aparentam ser pequenas, distante. Ele afrouxa a gravata.
As circunstâncias lhe fazem sentir falta de ar e tonteira, numa sensação de quase desmaio. Ele não quer que a esposa perceba sua agonia. Desde a morte do pai, tem se sentido muito vulnerável, sem se exercitar, comendo de forma irregular e sendo gratuitamente agressivo.
“Quem é?” Carlos pergunta, quando ele percebe ela digitando no celular.
“É o Jefferson. Ele quer saber se está tudo bem.”
Sob o olhar de Marieta, Jefferson é inofensivo. Jovem e cheio de músculos, frequenta a mesma universidade que ela, e desde o início se tornam muito próximos. Toda vez que saem, Carlos sente-se inferior, sem lugar.
“Ele não desiste, não é?” Carlos pergunta, rancoroso.
“Não comece”, ela responde, tentando apaziguar a situação.
“Você está agarrado a esse cara.”
“Ele é gay, Carlos. Qual o problema?”
“Então? Ele ainda é homem.
“Você quer que eu vá com você?”
“Vou falar dos meus pais,” repete, ainda esperando o elevador.
Carlos entra no elevador e subitamente sente seu corpo subindo quase trinta andares em menos de dez segundos. Ele respira aliviado quando chega ao topo. Há muitas salas ao longo de um corredor comprido e impessoal.
No final, uma sala com uma placa na porta: César Campbell, psicólogo. É de madeira e range um pouco ao ser aberta. Um biombo separa a pequena sala de espera, com duas cadeiras e um porta-revista. Por detrás da porta fechada, um murmúrio de vozes, possivelmente de uma sessão em andamento.
Carlos lembra da última vez que foi ao médico, sala ampla, portas de vidro e cadeiras de couro, no mesmo hospital onde seu pai havia morrido de insuficiência renal. Era um check-up anual e ele teve que preencher um formulário, pela primeira vez marcando uma caixa explicando a causa mortis do pai. Queriam informações sobre a genética da família.
A primeira coisa que Marieta nota quando entra na sala é uma gravura de Freud e o inconsciente, além de algumas pinturas da exposição nas paredes. Corpos masculinos e femininos expostos e deformados.
“O quê?” Carlos pergunta, quando percebe a expressão de Marieta.
“Não sei, essas pinturas me incomodam”, ela diz, desconfortável.
“Impulsos estranhos”, afirma.
“O que você quer dizer?” Ela pergunta.
“O nome das pinturas”, ele diz, colocando os óculos.
Talvez ela esteja nervosa. Marieta se dá conta de que não teria coragem de confessar seus problemas a um estranho, mesmo que precisasse. Ela é muito extrovertida, mas odeia falar de si mesma. Ela ignora os pensamentos, com medo que ele possa notar. De repente, a porta se abre.
Uma jovem, com salto alto laranja e blazer, muito atraente e com aparência latina, sai pela porta pequena, cumprimentando o homem com um aperto de mão. Ele é careca e magro, pele branca e cabelo preto nos braços.
“Até segunda-feira”, ele diz.
O psicólogo se vira. Trocam olhares, mas não dizem nada.
“Carlos?” Ele pergunta.
“Sou eu”, Carlos diz, sem se mexer.
“Prazer em conhecê-lo. César. Vamos entrar?
Carlos se levanta num pulo e joga a revista na cesta, como se pego de surpresa. Olha para trás, procurando por algo que não consegue encontrar.
“Oi, sou sua esposa, Marieta.”
“Olá”, o homem diz, indiferente. “Por favor”.
Carlos entra com as mãos no bolso. Marieta, de pé, atrás, permanece sentada. Dentro da sala, um bloco de notas com alguma coisa escrita, uma estante, uma grande janela, um divã e algumas cadeiras. O ambiente está meio iluminado e as cortinas estão fechadas.
“Eu não sei como começar”, afirma Carlos.
Ele seca o rosto com um lenço que tira de uma pequena caixa na mesa à sua frente.
“Na verdade, foi minha esposa que insistiu que eu viesse.”
A mesa, coberta por um vidro transparente e grosso, tem pastas empilhadas de um lado, o que dá um aspecto profissional ao espaço. Um calendário com desenhos de flores tem algumas datas marcadas. O homem puxa uma cadeira e se senta ao seu lado.
“Você tem muitos clientes?” Carlos pergunta.
“Isso é importante?” César responde, interessado.
Sem medo de ser julgado, Carlos prefere não responder. Todos seus pacientes devem ser como a mulher que saiu, jovens e belas.
“Eu não deveria estar aqui”, afirma Carlos, hesitante.
“Por que?” César pergunta, dando-lhe um formulário.
“Oi?” Carlos pergunta, nervoso.
“Só preciso dos seus dados e consentimento de que você está vindo aqui por livre e espontânea vontade”, explica.
Carlos olha em volta, procurando pistas que possam indicar o que fazer, até simplesmente preencher os dados e devolver a folha para ele.
“É porque sou muito ciumento”, afirma, as mãos entrelaçadas.
Na sala de espera, Marieta sente calafrios no corpo. As imagens na parede, os músculos do corpo, lhe faz pensar nos passeios que faz com Jefferson nas trilhas de Vancouver, seu torso atlético à sua frente, mantendo-a segura. Teria Carlos segredos?
“É só um instante, mas estou sempre muito perto de socar a cara daquele amigo de Marieta,” explica Carlos. Agressão é o último recurso, mas seus impulsos são fortes.
O homem acena.
“Você está acostumado com isso?” Carlos pergunta, um pouco perdido.
Como sua mãe fez com o pai, Carlos tem medo de ser traído.
“Estou com Marieta faz cinco anos. Ela quer ser mãe, mas acho que sou estéril,” Carlos confessa.
“Você foi testado?” César pergunta.
“Sim, já,” mente Carlos.
“Foi?” César repete. “Diga o que vier à mente.”
“O que você quer dizer?” Carlos pergunta, inseguro.
“Livre-associação. Não se preocupe tanto”, explica.
Do outro lado, Marieta tenta ouvir as palavras dentro do escritório, mas é inútil. As paredes são à prova de som. Talvez seja melhor não saber o que conversam.
“Já disse que sou infértil”, afirma Carlos, com raiva.
“Ok”, diz o médico.
“Você não pode me ajudar a mudar?” Carlos pergunta.
“Você quer mudar?” Cesar pergunta.
É quando Marieta abre a porta, aflita. Não sabe quanto tempo já se passou, mas julga terem falado o bastante. O médico recolhe os papéis. Carlos sorri quando lhe vê.
“Eu não gosto de passar todo esse tempo esperando”, afirma Marieta.
“Terminamos”, afirma César, apertando a mão de Carlos.
Dentro do elevador, Carlos tenta abraçá-la, mas ela o evita. Na recepção, a loira continua lendo um livro perto da exposição de arte. “Você precisa de ajuda?” Ela pergunta, aproximando-se.
Minutos depois, ela embrulha o quadro, semelhante ao do terapeuta.
“Eu gosto de corpos incompletos,” diz.
“Você gostou da sessão?” Marieta pergunta.
“É diferente. Ele escuta”, afirma.
Quando Carlos pendura o quadro, sente um pânico repentino, como se partes desconhecidas de si mesmo estivessem expostas. Respira fundo. Na parede, o torso incompleto é perfeito.
Naquela tarde, Marieta lê um capítulo do livro sobre o sistema patriarcado na América do Sul, tema de sua tese de doutorado, e sai para passear com seu cachorro, um pequeno poodle. Encontra Jefferson na lavanderia e pergunta a ele sobre seu fim de semana.
“Este é o Rubens”, diz Jefferson, todo sorridente.
Ao seu lado, um homem mais velho com calças enrugadas e óculos escuros.
“Prazer de te conhecer,” ela diz, perplexa.
“Tudo bem em casa?” Ele pergunta, tirando suas roupas da secadora.
“Tudo,” afirma, ressentida.
Os dois homens saem da lavanderia de braço dados, rindo muito. Ela pensa em ligar para o marido, perguntar como foi o seu dia. Em casa, o apartamento parece menor do que ela se recorda. Do lado de fora, a neve cai sem parar e o estacionamento do hospital do outro lado da rua foi totalmente coberto de branco. O sol não dá as caras.
“O que você fez hoje?” Carlos pergunta, quando entra na cozinha.
“Encontrei Jefferson, que tem um novo namorado. Também tentei escrever um capítulo sobre a dominação masculina no Brasil,” afirma, segurando seu braço.
Ele pausa e lhe olha, se aproximando.
“Você foi à academia hoje”, ela observa, notando seu cabelo molhado.
“A sessão me motivou”, afirma, convicto.
Ela se inclina contra a cadeira, hesitando antes da próxima frase.
“Pensei que você não gostava de falar,” ela diz.
“Acho que tenho ciúmes dos seus amigos”, confessa.
“E por quê?”
“Ainda não sei.”
A noite termina com os dois falando sobre a possibilidade de se mudar para um apartamento maior. Talvez poderiam pedir um financiamento, ou quem sabe Marieta pudesse falar com seus pais.
Carlos se lembra da ansiedade, momentos antes de entrar no consultório do terapeuta, para falar sobre si mesmo.
Fecha os olhos e pensa nos amigos de Marieta. Se pergunta se o amor tem algum significado. Não encontra resposta e nem por isso se incomoda: por enquanto, as coisas cabem mesmo na falta de explicação.
Conto publicado em inglês em Desejos Submersos e The Brasilia Review.