H

Ensaio de Désirée Jung.

Algo me acorda. Quando abro os olhos, desconheço do que se trata. O quarto escuro falta em movimento e emite um prenúncio de céu aberto, sem estrelas. Preciso voltar a dormir, mas não é tão simples assim. O pensamento escorrega além da madrugada, acelerado, como cigarras afoitas batendo asas dentro do peito, numa ânsia de libertação. Fico à espera de algo adiante, resistente à completude angustiante do silêncio. De repente, o som da letra H, saltando da minha cabeça, num rompante. Dou um pulo, agora sentada na cama, e sinto um súbito tremor no corpo. Uma invasão, uma letra gerando inúmeras associações; hospital, histeria, hoje, história, uma galáxia psíquica brotando do vazio. Fecho os olhos, abraço um travesseiro entre as pernas, e desejo a chegada do sono. Respiro fundo e deixo o som circular pelas minhas costelas, umbigo, ponta dos pés, mãos, sexo, pernas, que espasmadas, esbarram o interior dos verbos. Desde pequena tenho medo do escuro, da bruxa que insistia em pousar no tapete pendurado na parede em frente ao meu quarto de infância, bordado em ponto de cruz pela mãe. Eu, que fingia desconhecer o medo do crepúsculo, enquanto era capturada por ele, as algemas amarrando os braços numa maca de um corredor de hospital público no estrangeiro, imobilizador. A luz da memória lampeja, chove de verdade. Preciso voltar para casa. Preciso voltar para casa e não sei o caminho. Inspiro profundamente, o ar zumbindo como uma cigarra, a luz amarela de halogêneo, o inseto gozando do seu esgotamento, murmurando em algum hospital. O quarto lacrado. A mãe morta. O outro país. A impossibilidade de dizer tudo. A descontinuidade do tempo. Ninguém querendo saber nada. Eu querendo saber tudo. Onde você mora? Qual o seu nome? A resposta que nunca agrada. A receita de Risperidona para alguém sem qualidades, desqualificada, com dúvidas, do sexo especialmente, completamente desolada, desalentada dentro e fora, refém do desamparo do fim do mundo. Fecho os olhos com tantos pronomes, laços desfeitos, ameaças à sociedade, faltas insuportáveis, descrença nas metades, nos finais felizes. Foco na respiração, nos pensamentos que ultrapassam a morte por um triz, atravessam a casa, o hospital, a camisa de força, os enfermeiros, os delírios, a varanda, a cadeira morta, desfalecida no lugar do corpo, jogada em queda livre do nono andar de um velho prédio. Neste ir e vir de lembranças, nesta canção de ninar embalada pelo inconsciente, readormeço. Quando acordo, já é tarde na manhã. A luz se espreguiça contra as paredes, transborda as brechas das janelas, quebra o quarto em partes desiguais. 

Um branco outonal, quase azul, prenuncia o inverno. Corvos gralham na rua de fundo do apartamento em Vancouver. Cigarras sibilam em algum final de tarde de Brasília. Abro as cortinas e deixo a manhã gélida amanhecer. Num tipo de ressaca mental, sinto o raciocínio esfumaçar, elaborar os sentidos desta viagem. A cortina bate contra a parede, um vento súbito interrompendo meu monólogo. Ando até a cozinha, eu e minhas calças de flanela, moletom de tamanho exagerado, robe vermelho de pelúcia. Engulo quatro vitaminas com água, duas de ômega três e duas de casca de arroz vermelho. Será que fazem efeito contra o colesterol? Será que a ciência é eficaz por completo? Tiro a chaleira elétrica do armário. Espero a água ferver. Espero um efeito qualquer. Sem espelho, fico me olhando, mapeando meu ser no meio desta cozinha gelada, recebendo em sonho minha própria mensagem invertida, a mesma que enviei à mãe por correio eletrônico, há dez anos atrás, na véspera da minha internação, na esperança de ser salva da noite entenebrecida, das consequências indizíveis do que não se aspira, se inspira, expira com o passado, a letra H de help, ajuda, adentrando em presença a sala, os objetos afoitos por poeira, o cilíndrico robô eletrônico, parado em um dos cantos. Jonas é um aspirador de pó que determina a área do meu apartamento antes de começar a trabalhar. O seu progresso é calculado por um aplicativo que indica as áreas onde é preciso aplicar-se. Ele só pede ajuda ficando parado, quando entrando em contato com um objeto intransponível, ou se seu dispositivo estiver cheio de sujeira. Diferente de outros dias, quando tramo diálogos imaginários com ele, hoje nada é dito sobre a solitude das minhas sujeiras, meus tantos sujeitos, meus tantos buracos escancarados num espaço tão curto de tempo, a circular sob a sola dos meus pés descalços, no chão desta manhã fugaz. Despida pela noite, no macio da casa sem nada precisar dizer, coloco minhas meias felpudas, e espero o dia esquentar. 

Ensaio publicado em inglês na revista Miracle Monocle.