Despachos do Ventre

Estória de Désirée Jung.

Publicado em inglês na revista literária Blank Spaces, edição de aniversário, número 6.

Publicado na antologia Framework of the Human Body, Bell Press Books, 2022.

Tudo dito aqui será verdade com exceção da ficção que permeia todos os fatos permeados por um olhar. Esta será sua história. Este será o relato de como, apesar de toda evidência contrária, você será indesejada pelo seu pai antes do seu nascimento. Você irá descobrir isso muito tempo depois, porém. Sua vida não será fácil. Em certos momentos, você sentirá raiva, confusão. Você tentará – sem sucesso – escapar do destino imposto a você, até eventualmente entender como isto está diretamente relacionado com o destino dos nomes. Quando esse testemunho chegar à ponta dos seus dedos, você estará teclando o seu passado no futuro, hoje. Você chegará aqui, como você já sabe, com a minha ajuda. Eu irei lhe ajudar a recontar a história de como você será a segunda tentativa da sua mãe de engravidar, desta vez, bem-sucedida. Você compreenderá como ela desejará o que você irá se tornar – apesar de ser muito cedo ainda para você saber disto. 

 Você irá compreender como ela saberá, conscientemente ou não, do peso (e do poder) que essa criança carregará se sobreviver à própria morte, e o desejo do pai de nunca ser pai. Essa mesma mãe lhe dará um nome que lhe ajudará a sobreviver o desejo de morte do pai, e esse mesmo nome lhe dará a vida, apesar de ele não desejar isso. Deste momento em diante, e com a ajuda desta inscrição, você saberá a verdade sobre seu nome – quando você estiver pronta para escutar. Assim que você entrar na casa do seu pai pela primeira vez, você não compreenderá por que não se sentirá amada por ele, menos ainda porque será rejeitada ao invés. Você concluirá que deverá haver algo de errado consigo. Você aceitará suas regras, e ouvirá durante toda uma vida ele dizer, como trejeitos de piada: “você é a filha da sua mãe, eu não tenho nada a ver com isso.” A configuração da sua vida estará exposta diante dos seus olhos.

Ainda bebê, você chorará em silêncio, para não amolar o pai. Será que você não pode ver que estou queimando? Você terá vontade de dizer. Será que você não enxerga a minha morte nos seus olhos? Você tentará berrar. Você sentirá essa rejeição vindo de todos os lados, sem necessariamente saber por quê. Durante um bom tempo, você não falará a respeito disto, nem escreverá sobre o assunto, até agora. Mas um dia você sobreviverá ao desejo do pai de matar a vida em você. Você procurará o sentido da paternidade por toda a sua existência, inclusive enquanto você assistir sua mãe morrer enquanto reflete como ela te amou e desejou – apesar dele.

 Você nunca se sentirá bem-vinda na casa do seu pai, nem mesmo hoje. 

 Você reconhecerá que ele nunca foi fisicamente abusivo com nenhum de vocês, apesar de algumas vezes você desejar que ele tivesse sido. Você escutará muitos afirmarem que isso é uma coisa terrível de se dizer, especialmente quando eles ignoram como a crueldade, a frieza, e a opressão psicológica nem sempre são consideradas abuso ou tentativa de controle. Você entenderá as constelações das suas origens. Você reconhecerá seu pai como um impostor imposto. Você nunca terá filhos, por medo de projetar neles tal sentimento horrendo de rejeição a uma outra criança. Você passará grande parte da sua vida em solitude, aprendendo a lidar com a sua própria história. Você conseguirá chegar até aqui e confirmar isso na escrita. Você digitará essas páginas de um lugar bem mais leve.

Você simpatizará com a filha retratada no filme Imitação da Vida, de Douglas Sirk, que confronta sua mãe indagando sobre o sentido do seu próprio nascimento. Como ela, você não precisará das razões da sua mãe para viver – você terá encontrado suas próprias.

Você recontará seu passado. Você reconhecerá como sua mãe tentou compensar a falta de falta do seu pai. Você se sentirá amada por ela. Você aprenderá como seu avô paterno sofrera um ataque do coração fulminante quando seu pai tinha catorze anos. Você ouvirá, de suas tias, que seu pai é quem encontrara o corpo morto na cozinha – um contador alcoólico que joga todo o dinheiro que possui e bate no filho, seu pai. Seu pai terá lágrimas nos olhos ao lhe contar sobre o próprio pai, sem mencionar as surras. Suas irmãs que lhe dirão o outro lado da mesma história. Por ser o filho mais velho da família, seu pai ajudará a mãe, sua avó, a criar seus três irmãos: seu primeiro ensaio na paternidade, descreditado. 

Você justificará a rejeição do seu pai se baseando em tal relato. Você repetirá o discurso da sua mãe para te persuadir da conduta do seu pai. Você reconhecerá os efeitos danosos que essa narrativa terá em você, e não ficará convencida. Você parará de repetir essa história para desculpar o comportamento do seu pai. Você ainda especulará como seu pai inconscientemente pode ter desejado a morte do próprio pai – como você – e a culpa que sente quando isso se materializa diante dele. Você verá como não ser desejada pelo pai esconde um lado velado do desejo: operador de morte e rejeição. Você se conscientizará que seu nascimento foi predeterminado por essa lógica.

Sua sexualidade será uma grande fonte de conflitos para você. Por um longo tempo, você evitará confrontar o amor e ódio que sente pelas mulheres em seus relacionamentos com os homens, sem necessariamente saber por quê. Seu desejo sexual por mulheres, e seu amor afetivo por um homem que nunca te desejou antes, retalhará sua mente, literalmente. Você não conhecerá o orgasmo até muito tarde, e ainda assim, não todo. Você terá o hábito de associar sexo com morte e psicose. Você terá dificuldade em diferenciar satisfação e insatisfação, prazer e desprazer, gozo e abuso. 

Você terá várias passagens por diversas alas psiquiátricas. Você será retida por conduta perigosa ao social sob o código de saúde mental do Canada. Você agirá de forma desesperada, perdida, até chegar aqui.

Você terá um longo caminho pela frente, até decidir falar com alguém que possa te escutar. Seu trabalho com ela durará anos (interminável ainda) e essa labuta lhe trará de volta às palavras. Você ancorará seus medos na sua escrita, e aprenderá como se expressar. Você falará da sua sensação de ruptura. Você reviverá seu sentimento de rejeição. Você se reconectará com o profundo sentimento de desejo recebido da sua mãe. Você será mais tolerante e compreensiva com o sofrimentos dos outros. Você começará a perceber que muitas pessoas, não só você, sentem de forma semelhante. Você associará esse mal-estar originário com a paternidade. 

Você encontrará exemplos na literatura, no livro autobiográfico de Karl Ove Knausgaard, quando ele descreve beber leite azedo com cereal durante a infância com medo de desagradar o próprio pai, engolindo o gosto amargo em silêncio. Você se identificará com essa ânsia de ser amada por este pai. Você repetirá a metáfora do leite azedo e seu gosto desestabilizador para descrever seus sentimentos ao redor do seu pai. Você se dará conta do horror que ele terá ao ver o seu tamanho esforço, sem verdadeiramente te compreender. Você saberá dessa verdade depois de relembrar diversos eventos dolorosos e vividos intimamente. 

Você se lembrará quando tentou dizer não a um namorado que te forçou a fazer sexo, te estuprando quando você teve relações sexuais com um homem pela primeira vez. Você terá dificuldade em reescrever esses eventos como eles verdadeiramente aconteceram. 

Você também se lembrará de outros homens com quem transou sem necessariamente ter vontade, principalmente por não saber, ou conseguir, dizer não. Você se recordará, ainda, um relacionamento com uma mulher que fisicamente e emocionalmente abusou de você. Você se questionará por que escolheu ocupar o lugar da vítima. Você associará vitimização com a paternidade. Você não deixará essas respostas passarem em branco, e você sofrerá bastante para compreender o significado delas. Você compreenderá que somente quando você nomeia o passado é capaz de mudar seu relacionamento com o futuro, apesar da dor que isso te acometerá em certos momentos. 

Você será confortada pela memória estonteante da beleza de sua mãe, e seus olhos meigos. Você também reconhecerá sua presença Medusa paralisante e indizível, transformando homens em cinzas antes mesmo que pudessem ser nomeados.

Você refletirá sob o poder que ela possuía de parar palavras em meia voz, ao bel dispor, fazendo do silêncio um valor sagrado, mesmo que isso pudesse lhe custar a vida. Você se conscientizará do desejo inconsciente de vingança da sua mãe ao patriarcado, imposto e herdado por ela também. Você terá a sorte de reconhecer suas serpentes, as quais você terá grande apreço: rastejando de cabeça a cabeça, atravessando gerações sem parar, antes de entrarem na sua; você saberá como seu pai permanecerá devoto às verdades universais, como um autêntico matemático.

Um dia, refletindo sobre a possibilidade de ser seu número mais irracional, você ouvirá uma risada surgir das profundezas do seu ser. Essa risada dará som a uma voz inaudita e misteriosa. Você terá prazer em lhe dar boas-vindas, encontrando pela primeira vez a pequena bebê morta morando dentro de você.

Antes que ela possa lhe dizer seu nome, você se desculpará por nunca ter reconhecido a sua existência antes. Você lhe dirá estar pronta para lhe escutar, ciente da dor e dos efeitos que as rejeições vividas por ela poderão ter sobre você. Você ouvirá sua risada de novo, desta vez com um excitação verdadeira.

E você sorrirá de volta para ela, com o coração aberto. 

Você se tornará a primeira mulher da sua família a convidar um bebê morto para dormir contigo na sua cama, só para ouvir o que ela tem a dizer. Você abrirá seus olhos enquanto ela se deitar dentro de ti, inerte, lentamente re-acordando para vida só porque você decidiu ouvir suas histórias, de dentro e fora dos sonhos. Você re-conhecerá seus desejos mais profundos, suas maiores forças, e entenderá como elas estão amaradas com seus medos coletivos. Você se encantará por finalmente recebê-la em sua casa, enquanto ela se maravilhará de finalmente ter tido a coragem de pronunciar sua voz. 

Você, também, lhe contará sobre seus segredos, seu medo de ser mulher. Com a ajuda dela, você aprenderá a confiar nos seus sentimentos, abandonando aquela placenta, há muitos morta. Você nomeará os efeitos da sua infância e suas produções autopunitivas. Você verá a paralisia das emoções como agulhas dentro da pele, maçantes, incolores como o acido lático formado sobre o leite azedo, e produzido pelos músculos durante excesso de esforço. Você lhe dirá: “não é atoa que tenho me sentido exausta fisicamente esses dias,” ao que ela responderá, “não é atoa que a memória tem gosto ruim, um retorno da náusea do seu próprio nascimento.” Você a amara até a morte, e até que ela se torne parte de você. Você fará luto dela com suas letras. 

Finalmente, você se lembrará de respirar profundamente em todos os momentos, mas principalmente à noite, não concedendo à pulsão de morte do pai. Você não permitirá que ele o devaste até a sepultura, nem deixará que seu desejo morra, como muitos outros homens e mulheres antes de você. Você saberá sobre sua própria morte de dentro para fora, e isso será sua fonte de luz. 

Você se satisfará com os pequenos prazeres da vida, como o brilho dourado do sol nos primeiros dias da primavera. Você portará sua história com orgulho, apesar das dores que ela contém. Você saberá o significado do seu nome de cor, compreendendo como ultrapassar o grafo de sua mãe. Você estará aqui até não estar mais, pois não dependerá somente de você mapear esse desenho. 

Estória nominada para o prêmio literário 2023 Pushcart Prize.