9h53

Conto de Iacyr Anderson Freitas

Tradução para o inglês por Desirée Jung

Do mínimo também se vive.
Fernando Fiorese

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Tinha uma reunião importantíssima às onze horas e ainda faltavam mais de cem quilômetros de estrada. Uma rodovia péssima, aparentemente abandonada, onde o mato já tomara toda a extensão do acostamento e onde, de quando em quando, pelas fraturas mortas do asfalto, os galhos secos sacudiam suas arcadas ossudas.

Havia muito que não se avistava qualquer placa de sinalização, uma casa ou um posto de abastecimento. Nenhum veículo passava, aliás. Ele estava só e, pelas contas, atrasadíssimo. Era um risco transitar por ali, num trecho tão precário e desconhecido, a cento e vinte por hora. Mas agora não possuía outra saída. Por que aceitara o conselho de um caminhoneiro? Antes tivesse suportado alguns quilômetros a mais, caso a estrada principal, acesa em vermelho no mapa onde aquele atalho sequer aparecia, fosse a escolhida.

Girando o pulso, tentou de novo conferir as horas. O relógio trouxe-lhe um calor estranho. Lá estava, inútil, a mesma marcação anterior. Os ponteiros fincados na argila escura do tempo, inertes e frios. Às nove horas e cinqüenta e três minutos. Em consonância absoluta com aquele estranho lugar, também a sua bússola de pulso não mostrava mais sinal algum de vida. Sentindo uma leve pressão nos ombros, ele percebeu, divertindo-se um pouco, que a força que movia aquele pequeno conjunto de engrenagens, com seu mudo incêndio de minutos e segundos, ficara, tal qual tudo o mais, perdida em algum ponto remoto da estrada. “O tempo restou pelo caminho, no pretérito, de onde talvez não possa ser mais resgatado.”

Essa idéia absurda, que lhe veio à cabeça em tom de brincadeira, causava-lhe um delicado desconforto. Como se uma corrente invisível o puxasse, pouco a pouco, para o esquecimento. Olhou outra vez o relógio. Nove horas e cinqüenta e três minutos. Em seu pulso, doravante, qualquer indício lhe diria que, antes de tudo, seria preciso romper o portal daquelas nove horas e cinqüenta e três minutos. A estrada derruída e vazia, o mato espesso estreitando o negro espinhaço do asfalto, o carro a cento e vinte quilômetros por hora e ele tendo de adivinhar o tempo através da posição do sol ou da sombra. Decerto não era esse o melhor dos mundos.

Crescia mais e mais o seu desconforto. Aquele estranhamento de, sem qualquer aviso, ter de deitar fora o relógio e, a custo, espremer de seu próprio rosto o soldo sumarento dos anos. Assim de repente, por exemplo, ser obrigado a almoçar apenas quando sentir fome. Ir ao trabalho porque há mesmo um motivo muito sério para ir ao trabalho – e não porque o céu que se abre é de uma terça-feira e já são sete e meia da matina.

Ser forçado a consultar alguns dos outros, dos infinitos relógios que percutem dentro de seu corpo, nos ossos, e esgarçam, minuto a minuto, a pele do braço ou do pescoço. Algo lhe dizia, do fundo de seu abandono, que o mundo já fora assim algum dia. Que outros mediram a sucessão do tempo pelo rumo dos ventos ou das chuvas. Que essa licença era de uma vertiginosa e terrível felicidade. E que era preciso, para continuar vencendo cada metro daquele estranho caminho, era de suma importância, naquele momento e até o fim de seus dias, custasse o preço que custasse, afastá-la imediatamente de seus olhos.

Publicado em inglês em The Flexible Persona.