O Sacrifício

Conto de Iacyr Anderson Freitas

Tradução para inglês por Desirée Jung

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São os que matam.
Por encomenda
ou acerto de contas.
Também educam
no seu carinho.

No seu carinho
que não tocamos.
O lado quente
da morte.
Edimilson de Almeida Pereira

Esta noite passei da conta. Bebi demais. Minha cabeça ainda não parou de girar. De quando em vez o chão do quarto ameaça sumir, enquanto procuro afastar esta incômoda iminência de vômito. Estou apenas adiando o sacrifício. Terei de me levantar de qualquer jeito, sair em disparada para o banheiro, enfiar o rosto na moldura do vaso e abrir as comportas. Não haverá escapatória. Embora não seja uma novidade, isso me assusta ainda. Esse revés de afogamento. O ar fugindo dos pulmões não por força de uma água externa ao corpo, mas sim por causa de mananciais internos, insuspeitos, vulcões que rebentam pela garganta acima e ganham os esgotos do mundo.

Enquanto protelo meu sacrifício, penso no futuro sacrifício da mulher que dorme a meu lado. Sem o saber, dorme a sua penúltima noite. Amanhã terá saído desta para melhor. Seu sono tranqüilo e justo, no entanto, não denuncia tamanha catástrofe. Mal sabe que a seu lado, tentando adiar o inevitável vômito e ancorar a cabeça em algum objeto fixo do quarto, está o seu futuro assassino. O homem que a tirou da vida e que agora, sem perdão, irá lhe tirar a própria. Que posso fazer? Não tenho escolha.

Fizemos amor a noite inteira. Eu precisava me despedir em grande estilo. Ela é uma mulher belíssima, de corpo exato e olhar penetrante. Mas não chega a ser uma grande parceira na cama. Talvez o excesso de seus dotes físicos a deixe livre para se ausentar em pleno ato, sem cerimônia alguma. Para ela, creio, a luminosa presença dos seus quadris, a curva das suas coxas e o perfil arrogante dos seus seios dispensam qualquer outro empenho de sua parte.

Muitas vezes me senti sozinho ao lado dela, percebendo-a fria e distante – sem um tremor sequer nos lábios, nenhuma inflexão no gesto ou na voz, nada que denotasse o menor sinal da minha presença. No princípio, esse alheamento não me afetava. Bastava-me dispor de seu corpo. Depois, como é natural, outras exigências se insurgiram em meu espírito. Já que tivera muitos outros casos extraconjugais antes de conhecê-la, eu já provara, e bem, o sabor do negócio. Agora, para matar a saudade, preciso de uma amante stricto sensu, mais dedicada às delícias da cama.

O quarto parou de adejar. Minha cabeça não gravita mais à deriva, e a ânsia de vômito parece ir baixando aos poucos. Oxalá escape do sacrifício. Da próxima, deverei maneirar mais nos tintos. Até que sou duro na queda, mas hoje passei dos limites. Depois de duas garrafas, ela ainda me deu um Shiraz-Malbec inteiro de sua própria boca. Deitado e nu, eu lhe pedia. Não tinha sequer forças para me levantar. Ela enchia a boca e, colando-a à minha, me saciava. A ovelha alimentando seu algoz.

Quando a conheci, ela usava umas roupas extravagantes, dizia que estudava à noite e já era, à época, garota de programa. Agora é modelo profissional e não mora mais com os pais. É claro que eu banco o apartamento e seguro boa parte das despesas, mas tudo na maior surdina, pois não posso ficar com o rabo preso. Conta a meu favor os muitos parceiros que ela ainda possui, gente da alta, que estará metida nisso até o pescoço se o caldo azedar e não vai querer escândalo. Feito o serviço, não terão como me enrolar no caso.

Seis em ponto. Daqui a pouco ela terá de sair para o aeroporto. O vôo será às nove. Amanhã estará de volta, trazendo o dinheiro prometido. Não vejo a hora de botar a mão na grana. Eu a esperarei num restaurante situado no acesso ao setor de desembarque. Almoçaremos juntos. Depois a deixarei numa rua próxima ao seu apartamento e os outros farão o resto por mim.

Uma bela simulação que, se ganhar algum espaço nos jornais, será destacada como assalto seguido de homicídio. Sem pistas. Vejo-a dormir assim, tão serena a meu lado, e tenho pena. Algo nela lembra o jeito calmo e esquivo de minha filha. Não sei ao certo o que seja.

Seis e dois. Recordo-me agora, por falar nisso, da promessa que fiz para minha filha. Ela me pediu para acordá-la cedo, pois queria que víssemos juntos o dia amanhecer. Não são muitas as vezes em que a menina faz questão da minha companhia. É claro que há uma lógica nessa escolha: eu costumo dormir pouco e sair de casa nas primeiras horas da manhã. Já a mãe dela, aquela inútil, não se daria mesmo o trabalho de acordar de madrugada, custasse o preço que custasse. Sem pestanejar, firmei o compromisso.

“Você vai se esquecer de novo, pai. Você me promete faz tempo. Da outra vez, eu acordei cedinho e fui para o seu quarto. A mamãe estava sozinha. Você não dormiu em casa.”

O que eu poderia dizer? Que agora estava empenhando a palavra e que tudo seria diferente.

Minha cabeça parou de girar, o quarto tomou assento em volta da cama, mas a ânsia de vômito volta a piorar aos poucos. Esmaecida, a aurora acende os vidros da janela, decalcando figuras luminosas nas paredes.

Levanto-me. O chão parece escapar a meus pés. Atordoado, fecho os olhos e agarro-me à porta do guarda-roupa. Deixo-me ficar ali um bom tempo, em compasso de espera. Abro de novo os olhos: o mal-estar não cedeu ainda. Apenas os contornos do dia se mostram mais nítidos.

Minha filha tinha razão. Não poderei cumprir a promessa. Sinto que ela deve estar de novo acordada, ao lado da mãe, me esperando. A imagem dessa vigília me tolhe o ânimo. O vômito é agora inadiável.

Cerrando os dentes, com as mãos sobre a boca, corro para o banheiro e aceito o sacrifício.

Conto publicado em The Fiction Pool