Dia de Casamento

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Denise não entra no clube imediatamente, e pausa antes perto do pé manga. Subia nele quando menina, as frutas carregadas na árvore, movendo-se na cadência do vento, enquanto as crianças jogavam pedras até que as frutas caíssem no chão como dinamite, arrancando a casca com os dedos depois.

“Venha, vamos pegar uma mesa,” diz Cecília, puxando-a para dentro.

Sua mãe é alta, com costas alongadas. Lado a lado, são desproporcionais. Denise se sente muito pequena sempre quando vem visitar sua família.

Quando entram no salão, uma ruga esticada junto ao grande sorriso de Denise lhe deixa ainda mais consciente da própria idade, a pele já danificada pelo sol. Ter 40 anos e estar solteira num dia desses é como ser amaldiçoada.

A cerimônia no jardim é gregária, mas doce. Nem todo mundo vem, claro. O avô, ainda não aceitando a homossexualidade como uma escolha válida, não aparece, mas envia ao casal um convite para a feira comunitária. Ele acredita que o mercado de orgânicos irá lhes agradar.

Tio Tom passa correndo com uma rosa artificial na lapela, atarefado, segurando o buquê numa mão e uma garrafa de champanhe na outra.

“Estou feliz que você veio, boneca,” diz, ao passar por ela.

Seu casamento com Rob o salvou de ser mais um divorciado na família, apesar da lista de casamentos fracassados ser raramente mencionada hoje em dia. Ele também emagreceu.

Ao seu redor, os garçons seguram grandes bandejas de canapés com fiapos de manga, combinando com a decoração tropical do local. O homem de terno escuro é Robert, seu noivo, que não traz o mesmo nervosismo. Sua história é singela. Órfão, criado por uma tia. Poucos parentes presentes.

A história oficial deles era doce. Se conheceram na fila do supermercado, ambos tentando comprar um Chester para o fim do ano, época caótica no Rio de Janeiro. Naquela época, ainda era casado com uma mulher, mas o casamento não durou. Suas preferências sexuais eram mais fortes.

“Tem certeza que ele é a escolha certa?” A mãe perguntou, como se o companheiro fosse uma roupa a ser experimentada. Denise sempre se intimidou com a abordagem materna sobre o casamento, como um acordo feito entre partes interessadas.

Voltar ao Brasil sem a própria família era um problema para ela. Apesar de ser enfermeira desde os dezoito anos, vivendo no exterior sem demandar muita atenção, ainda se sentia insegura. Quando saiu do Brasil, nunca imaginou que chegar aos quarenta sem conhecer o homem certo. Mas, novamente, era a voz de sua mãe ecoando em sua cabeça.

“Logo você não terá muitas mais chances,” alertara Cecília.

Agora, num dia nublado, em um casamento gay, se relembra do último encontro que teve no Canadá com um brasileiro, numa galeria de arte moderna. A mostra era sobre Monet. Não tinha dado certo. O homem queria uma esposa, mas ela queria ser uma mulher livre.

“Não sei se você se lembra de mim. Sou Daniel”, diz o estranho, sentando-se ao seu lado, as costas curvadas. Ela está perdida nos pensamentos quando ele se aproxima. Ela levanta os olhos por educação.

À distância, Cecília, sua mãe, continua a dar instruções aos convidados, como se todos ainda precisassem de orientação nesta altura da festa. O homem recém-chegado tem bochechas largas, rígidas como uma porta de madeira. Ele é ligeiramente calvo, com olhos profundos.

“O clima está foda. Quente como um oásis”, ele afirma, enxugando a testa com um lenço. Ela hesita, seus braços suando e manchando seu vestido.

Ela não o reconhece.

“Desculpa, você é membro do clube?” Ela pergunta, evitando lhe olhar diretamente. Talvez estivesse entrado na festa por engano.

No centro de Toronto, as pessoas geralmente confundem o centro comunitário com a academia de ginástica, desconhecendo as regras de circulação.

“Você mora num outro país, não?” Ele pergunta.

Ela se sente segura ao seu lado, por alguma razão. Seu rosto é calmo, e ele não aparenta ter agregados na sala. Deve ser isso.

“Minha filha, Elisa, é gay também. Acabou de batizar minha neta na igreja metodista e agora vive com uma mulher. Não é minha primeira vez em um casamento como este. Mas ainda fico muito sentimental nesses eventos, especialmente depois que eles se mudaram para o campo e minha esposa morreu,” afirma.

Ele pega uma pequena garrafa de prata do bolso e despeja o whisky no suco de laranja que acabaram de servir na mesa. Ele segura a taça com uma leve tensão no pescoço, fazendo esforço.

“Eu nunca me casei de novo. E você? Qual a sua história? Ele pergunta, olhando ao redor, como se procurasse alguém.

“Isso é uísque?” Ela pergunta.

Ele coloca um pouco no copo dela e se aproxima com a cadeira.

“Eu não sou casado. Conheci um brasileiro numa exposição de arte uma vez, mas não deu certo. Relacionamento à distância,” ela diz.

Denise gosta dessa sensação nova de ser desconhecida, receptora de um olhar curioso, desvinculado do familiar. Há um zumbido alto nos alto-falantes. Ao longe, no palco, Robert começa os discursos, agradecendo a todos por estarem lá. Eventualmente, num dado momento, Tom chora quando todos descobrem como eles se conheceram.

“No nosso primeiro jantar, ele fez uma caçarola de frango com algumas sobras de fim de semana. Apesar de não comer carne com muita frequência, abri uma exceção,” afirma, erguendo a taça de champanhe.

É quando, de repente, o estranho bate com violência na mesa, falando com ela.

“Quando estava com minha esposa, queríamos que tudo funcionasse. Se não fosse por sua mãe,” diz Daniel, segurando as mãos.

Ele olha para ela como se esperando por uma resposta. Parece diferente agora, um homem bruto, de tom sarcástico, não mais amigável.

“Acho que você está enganado,” responde Denise, sentindo medo e tensão ao mesmo tempo, a menção do nome de Cecília lhe causando incerteza.

Sua mãe chega sem fôlego à mesa com algumas rosas na mão. “Pensar que sempre briguei com seu pai por coisas insignificantes,” diz, refletindo em voz alta e chamando o garçom. “Água, por favor.”

Daniel lhe olha, em silêncio, mas Cecília não reconhece sua presença. Denise finge não perceber nada. “Eles fazem um ótimo casal,” ela comenta, fixa no palco.

“Oi Cecília. Estava falando com sua linda filha. Minha esposa está morta, você sabia? Você não deveria ter lhe contado sobre nós. Ela nunca se recuperou,” ele acusa, não mais interessado em Denise.

“O que você está fazendo aqui?” Sua mãe diz, gritando, e logo diminuindo o tom. Muitas pessoas começam a olhar na direção deles. De repente, Cecília empurra o homem, mas ele não se mexe. Denise tem vontade de desaparecer.

Durante sua infância, as pessoas costumavam chamar sua mãe de “puta,” e Denise fingia não ouvir. Cecília agarra no braço do homem e finalmente desaparece com ele para algum lugar do salão.

Como no passado, as coisas acontecem sem qualquer explicação plausível. Não havia mais sinal de violência, apesar do silêncio sustentar a agressividade. Talvez o homem apenas quisesse assustar sua mãe.

Denise se lembra dos fins de semana quando ia ao clube brincar de pique-esconde, tentando fugir das brigas que sua mãe tinha com o pai sempre, seu ciúme e infidelidade um problema recorrente.

Ela gostaria de fazer as memórias desaparecerem, ou mudar o passado. O lugar parece mais sombrio agora; as cortinas de veludo causando uma estranheza entre tantos vasos amarelos sobre as mesas.

“Como ele entrou?” Ela pergunta, quando sua mãe volta, nervosamente abalada.

“Não importa,” responde Cecília.

O homem tinha sido escoltado para fora do salão sem que ninguém notasse. Como em suas memórias, as coisas aconteceriam e desapareceriam, sem qualquer lógica racional. Ela não sabia, até hoje, se sua mãe realmente dormia com outros homens, ou se seu pai se incomodava com isso. Eles permaneceram casados por 25 anos, até sua morte no ano passado.

Denise quer perguntar à mãe sobre o estranho, se ele era apaixonado por ela, mas Cecília anda em direção à banda, convidando o tio Tom para dançar.

Um samba rápido começa a tocar, e ele coloca a cabeça no ombro dela, como se estivesse chorando. Sem fôlego, Denise sai do salão e de repente se vê do lado de fora, perto das quadras de tênis.

“Lamento não termos tido tempo para terminar conversa,” diz Daniel, do outro lado da cerca. Ainda segura o cantil. Quando jovem, Denise costumava fazer longas caminhadas perto das quadras, mas o local parecia menor, com menos saibro. Ela não tinha muitos amigos na época, muito menos agora.

“Sou um velho amigo da sua mãe,” ele explica, se afastando. “Deixa para lá, eu bebi demais, deveria ter apenas parabenizado o seu tio Tom. Ele era um velho amigo. Mas às vezes o passado volta e entra no caminho,” diz ele, continuando a andar e se desculpando.

Ela gostaria de saber o seu lado da história; tinha tantas perguntas e dúvidas dentro si. Havia um homem que vivia numa casa perto do rio. Sua mãe costumava ir lá algumas vezes por semana.

“O que você acha que está fazendo?” A mãe pergunta quando Denise volta da caminhada.

“Só fui dar uma volta,” afirma.

Tio Tom se aproxima da mesa para ter certeza de que está tudo bem.

“É estranho como as coisas têm seu próprio destino nesta família,” diz Denise.

“Você não sabe. Você não sabe de nada”, responde Cecília.

“É a minha festa, vamos esquecer isso,” diz Tom.

Eles trocam olhares e sua mãe vai embora. Denise não vêm ao país faz algum tempo, mas os segredos não desaparecem com tanta facilidade. A espontaneidade do início da festa desaparece assim que ela retorna à mesa.

“Achei que você ia encontrar sua alma gêmea aqui,” comenta Robert, vendo o parceiro dançar com sua mãe.

“Acho que o amor tem muitas facetas”, comenta Denise. “Talvez o encontre em breve,” levantando-se para se servir de comida.

“Denise?” Cecilia diz, enquanto a filha está na fila.

Há churrasco e saladas tropicais sendo servidas no buffet. Ela levanta os olhos do prato vazio.

“Oi,” Denise responde, as mãos cruzadas sobre o vestido rosa de cetim com pregas. A mãe lhe abraça por trás.

“Sinto muito,” diz.

Na cerimônia, ela tinha notado como a filha tinha chorado, feliz e orgulhosa do irmão.

“Está tudo bem. Fico feliz de ter vindo,” Denise diz, chegando ao fim da fila e vendo todos os parentes circulando no salão, radiantes com a vida.

“Vamos nos sentar,” enfatiza a mãe, atenta.

Todos estão relaxados. A música brasileira lhe faz lembrar dos musicais que costumava assistir na TV, enquanto sua mãe dançava com o pai no meio da sala. A comida tem um gosto doce, e acidentalmente, um fiapo de manga fica preso entre seus dentes da frente.

“Você está bem do jeito que está,” afirma a mãe. “Não é preciso mudar nada.”

A frase é sem lugar, mas bem-vinda. Lágrimas escorrem pelas bochechas de sua mãe. Tudo acontece muito rápido.

“Temos uma boa família,” afirma Cecília, emocionada.

“Sim, parece que temos,” diz Denise, incerta.

Mais tarde, sentada próxima ao pé de manga, os saltos afundados dentro da terra, ela se surpreende com a fruta caindo do galho em seu colo. A queda lhe assusta, mas não muito. Quando voltar à Toronto, terá muitas histórias para contar aos pacientes, mesmo que nem todas sejam verdade.

Como a ficção, as memórias mudam de acordo com as circunstâncias e o tempo, sempre transformando-se em algo novo, incompleto, e cheio de palavras. Ela rasga a pele da fruta e morde sua carne, sentindo um fio de suco escorrer pelo rosto.

Conto publicado em inglês em Tribe Media.