Não Ficção por Désirée Jung
O corte do lado direito do pescoço é tão importante quando a costura do lado esquerdo, que será refeita depois. A remenda, o cirurgião deixa imperfeita, sem retoques plásticos. Ainda assim, com o tempo, a cicatriz começa a curar, apagando e desaparecendo, ao menos do lado de fora. Por dentro, a cisão deixa marcas, defeitos, causando um processo de renomeação; um estranhamento dos nervos cortados na região afetada, órfãs de suas antigas funções, desnorteadas de suas origens cerebrais, enviando tremores ao meu quadril quando deveriam submeter a informação para outrem e fazer meus dedos tremerem.
Mas quem se importa? Estou livre desse corpo que se acreditou passível de controle. Deixo os médicos seguirem confiantes na ciência de que os ligamentos do lado direito do meu pescoço voltarão ao normal, crescendo e renascendo como outrora. Enquanto isso, experimento o vão inesperado das surpresas que dissolve fantasias de um corpo contínuo e omnipotente, agora afetado pelo encontro da pele e seu incansável espírito, que relatam uma outra versão da história. Da sede que permanece quando a base da língua é necrosada por radiação, seus verbos queimados num pulsar incerto, mas internamente transformado.
A mutilação da fala convoca berros insistentes e revela uma história de excessos: acumulação ancestral de debris na minha boca, mas também um ingenioso resgate do que esqueci: a bênção da presença capaz de me levar de volta às trincheiras do corte, da incisão que reduz o paraíso dos meus antepassados em cinzas. Daqui, estou assentada sob uma fundação árida, ávida em reconquistar o orvalho dos silêncios, enquanto pouco a pouco reconecto palavras à letras retesadas, nem sempre capazes de cria e, ainda assim, brotando plenitude nos bálsamos da vida, onde reinstauro as fronteiras dessa nova terra ressarcida.
Publicado em inglês em Sunhous Review, Issue 1, Volume 02, October 2024.