Workshop ou Ponto de Fuga

Conto de Iacyr Anderson Freitas. Publicada em inglês com tradução de Désirée Jung.

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Todas estas informações têm uma soberba desimportância científica – como andar de costas.

Manoel de Barros

Para começo de conversa, nunca deseje saber o porquê de um workshop. Se quiser desempenhar um bom papel, esqueça que o dia lá fora está azul, que uma brisa finíssima acende as folhagens do jardim defronte, vinda talvez de campos remotos ou de geleiras impensáveis. Deixar de lado tais coisas é fundamental. Há lugares onde não podemos admitir qualquer indício de infância. Note bem: o salão do hotel não é frio somente por causa do ar condicionado. O mesmo sol que calcina os pedestres sobre o viaduto, inclemente e áspero, mal rasura o fumê das janelas ou a doentia extensão do carpete aqui dentro. Tudo é feito para que a vida fique à distância, além do granito das paredes. O ambiente é asséptico, ideal para acontecimentos dessa natureza. Sua iluminação não faz vibrarem as cordas vocais. Afinal de contas, o que seria do evento se aquele senhor de cabelos grisalhos, sentado na segunda fileira, começasse de repente a solfejar velhas cantigas de roda? Se a decadente senhora a seu lado, mãos e lábios trepidando, lhe dissesse nunca ter superado a desclassificação sofrida num concurso de Miss Primavera? É preciso passar ao largo de tudo isso, inclusive do que está sendo falado pelo consultor da corporação, na abertura do encontro, para se concentrar apenas, por exemplo, no ponto luminoso que escapa ao aparelho de reprodução de vídeo. Ter um ponto de fuga, chamemo-lo assim, é questão de sobrevivência. O belo par de brincos da assistente do hotel ou a correntinha de ouro que circunda seu tornozelo não servem, pois podem percutir de modo pouco condizente. O principal, no que se refere à escolha de um bom ponto de fuga, é ter certeza da sua neutralidade. Um espécime aceitável não deve evocar nenhuma lembrança, não deve fazer com que queiramos, diante dele, deitar na grama da praça ou, em última análise, atravessar o continente de bicicleta. Sua gelada geometria é o antídoto contra dois dos males mais terríveis dessas ocasiões: o esgar ou o sono. Duas pragas que atormentam a vida de quem se dispõe a participar de qualquer workshop. Concentremo-nos, a título de exemplificação, na voz do consultor, no modo como sua exposição defende o mote da velocidade dos dias atuais. Isso é coisa batida, nós todos sabemos. “Antes ainda era possível fazer cursos anuais de atualização,” diz ele, “agora, no entanto, quem não se dispuser a um sistema de reciclagem contínua, de hora em hora, estará fora do mercado.” Você já ouviu essa cantilena n vezes. Numa palestra proferida tempos atrás, esse mesmo consultor teceu comentário idêntico. Tintim por tintim. O problema, aliás, é que a palestra é a mesma, sem tirar nem pôr, não mudou nadica em dez anos, sequer as piadinhas se alteraram, o que nos leva a acreditar que, se o mercado fosse sério, esse profissional da repetição já deveria estar na rua, devidamente desempregado. Ou, por outro lado, se ele de fato se atualizou durante todo aquele período, soube esconder com perfeição o tesouro. E deve também, por mérito, ser demitido do mesmo jeito. Até que esse Monsieur Déjà Vu não parece má pessoa. Mantida a excepcionalidade própria ao caso, pode ser uma companhia tolerável no fim de semana, depois de duas ou três cervejas. Mas não dá para levar a sério alguém que passa mais de uma década rezando o mesmo credo. Agora ele começa a dizer que nós todos precisamos assumir a nossa condição de mercadoria, retirando disso, sem culpas, o melhor. Nossa grande luta será resistir ao teste da prateleira: não podemos ficar encalhados. Cada um de nós deverá encontrar a maneira mais adequada de ser vendido. Logo, capacitação elevada, boa imagem e disposição para inovar são elementos indispensáveis. Eis o momento em que, sem um bom ponto de fuga, o evento estará perdido. Ah, você poderá pensar que essa história de ser vendido, não faz muito tempo, tinha uma aura menos pomposa. Ser comparado a mercadoria, Deus meu, era crime. Sua memória poderá ser assombrada pela imagem do chefe do setor contábil da empresa, cuja responsabilidade, em grande parte, era coordenar o relacionamento da firma com os funcionários demitidos. Homem reservado e íntegro, conhecido nos corredores com a alcunha de Carrasco, acabou também incluído no programa de redução de despesas que ceifou, sem perdão, os altos salários. Sua esposa não tinha emprego e, como não poderia deixar de ser, a situação de seus quatro filhos tornou-se crítica. Foram retirados das escolas particulares e dos cursos extras, tiveram de ser atendidos pela rede pública de saúde, enfim, ficaram submetidos ao mesmo rol de direitos e vantagens que massacra noventa por cento da população. Depois de lutar alguns anos contra as dificuldades financeiras, contra a depressão da mulher e o desconsolo das crianças, nosso Carrasco abandonou o comando da família e saltou da janela do apartamento. “Não sei se volto para o jantar”, dizia o recado escrito no verso da conta de telefone, vencida havia seis meses. Pois bem, possuir um bom ponto de fuga poderá ajudá-lo a não se lembrar dessas coisas. A ouvir o consultor até o fim, sem um travo sequer no semblante. De vez em quando, um meneio regular da cabeça ou uma leve tração nas sobrancelhas lembrará aos outros o nível do seu interesse. Você poderá anotar na agenda os apelidos da moda, reforçando o seu dicionário particular: meta virou oportunidade, desvio de desempenho deve ser chamado de lacuna, visão proativa exala naftalina, etc. É importante não trocar os nomes, já que os conceitos são os mesmos. Qualquer desvio nessa área pode ser fatal. No próximo inverno, novos epítetos estarão circulando e estar atualizado fará diferença, por favor. Aproveite as pausas para o lanche e pense que um workshop dura no máximo uma semana. Nada horrível, não? Se tal idéia lhe soar efusiva demais, firme os olhos no ponto de fuga e faça o possível para não assobiar a 5ª de Beethoven.


Published in the Latinlit Literary Magazine, Winter 2021.