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Minha mão treme um pouco quando seguro o corrimão envernizado. É a minha primeira manhã aqui. Estou nervosa e muito próxima do meu sonho. Meu pai me disse que eu deveria me comportar silenciosamente em um país estrangeiro, então caminho com cuidado, tentando não fazer barulho. Mas a casa é velha. Parece ranger com tudo, como se o chão e as paredes estivessem vivos. Ainda não sei se alguém já acordou.
Penso no vazio das palavras, e gosto do silêncio. A melhor coisa de estar aqui é acordar sozinha sem ter que ouvir meus pais discutindo. Se ainda brigam tanto nesta idade, talvez deveriam repensar suas vidas. Viajar para o exterior é uma maneira de me afastar deles ao máximo.
Meus pais estão sempre passando por crises e me sinto presa no meio, tendo que tomar partido. Quando criança, procurava consolo no quarto, mas não era o bastante. Quando a oportunidade de viajar surgiu, não pensei duas vezes. Falei com o diretor da escola e preenchi os formulários necessários para iniciar os procedimentos. Convenci meus pais de que inglês era essencial para o futuro, e que eu tinha que ir para um outro país aprender.
“É um abrir a cabeça viajar para o exterior”, disse.
Minhas notas não eram as melhores, mas não importava, não estava sendo avaliada ou me inscrevendo numa universidade. Ia frequentar uma escola de idiomas. Tudo o que tinha a fazer era pagar a mensalidade, enviar o pedido, solicitar um visto e esperar o melhor. Quando tudo estava pronto, ansiava pelo dia de partir.
Depois de atravessar a área de alfândega e a segurança do aeroporto brasileiro, senti uma onda de pânico e um medo de viajar sozinha. Queria voltar para a segurança da minha casa.
Mas lentamente me acostumei com a ideia do desconhecido e de traçar meu próprio destino sozinha.
Fiz amizade com uma senhora mais velha, não exatamente velha, mas por volta das quarenta, sentada ao meu lado. Estava indo a Vancouver visitar a irmã que morava lá. Fazia isso todo ano.
“Não tem medo de viajar sozinha?” Eu perguntei, sem vergonha do meu inglês precário.
A mulher respondeu. “Você se acostuma com o silêncio. É muito reconfortante.”
Agora sei que isso é verdade. Desço as escadas enquanto gotas de chuva caem forte na janela. É uma sensação de acolhimento depois de uma longa jornada. Vi filmes por nove horas e troquei de avião em Toronto, indo para Vancouver. No trem do aeroporto ao centro, a cidade parecia cinza e industrial no início, com vegetação e áreas residenciais quando me aproximei da cidade.
Depois peguei um táxi para casa ao descer na estação Skytrain. Tudo o que conseguia pensar era em dormir no quarto da casa onde passaria meus próximos meses. Encontrei a chave debaixo do tapete, assim como o e-mail me informou. Estava hospedada na suíte do basement e havia uma entrada privada para o meu quarto, mobiliada com uma cozinha pequena.
Podia se ouvir pessoas se movendo no andar de cima da casa, mas pensei que seria melhor não interromper suas rotinas. Não sabia se eram como meus pais, que não gostavam de ser incomodados depois do jantar. Troquei de roupa e tomei banho. Cansada, comi uma tigela de cereal com leite como havia visto as pessoas fazerem na televisão.
A geladeira tinha pão, leite, queijo e geleia. Havia também outros itens que nunca tinha comido antes, como manteiga de amendoim e maple syrup. Li as saudações de boas-vindas que meus pais temporários me deixaram na entrada e assisti as notícias, tentando entender o que o locutor dizia, mas ele falava muito rápido. Estava dormindo no sofá quando decidi ir para a cama. Coloquei meus sapatos perto do aquecedor, pois estavam molhados pela tempestade.
Por causa da chuva, meu cabelo ficou sem forma, apesar da escova que tinha feito antes de sair do Brasil. Queria estar bonita ao atravessar o Oceano Pacífico pela primeira vez. Não há real inverno na América do Sul, pelo menos na minha opinião.
Havia muitos pequenos detalhes que ainda tinha que aprender sobre a minha nova rotina. Tinha recebido uma lista de instruções dizendo que horas levantar, qual ônibus pegar, o que reciclar. Meus novos pais estabeleciam as novas regras. Deveria jantar em casa e almoçar por conta própria.
Por causa da diferença de fuso, acabei acordando no meio da noite. Sem ter o que fazer, desfiz a mala e enchi as gavetas com blusas. Tive que registrar numa folha de papel o tipo de carne que queria comer. Escolhi frango na maioria dos dias, pois minha mãe havia |dito que no Canadá era orgânico e raro no Brasil. Nos outros dias escolhi salmão, porque aparentemente era do Oceano Pacífico. Gostava de doces, mas ficava de olho no meu peso.
Em casa, tínhamos uma empregada, Rosita, e minha mãe costumava lhe dizer o que preparar para jantar e almoço todos os dias. Uma semana antes de partir para o Canadá minha mãe acusou meu pai de estar flertando com Rosita e eles tiveram mais uma briga.
A casa onde fui hospedada era bem cuidada, embora suspeitasse que não tinham empregada. Pela lista, descobri quando deveria limpar meu banheiro e trocar os lençóis.
Agora que é finalmente manhã, estou livre para explorar. Encontro a sala principal da casa no escuro, tudo meio sóbrio e penetrante. Janelas grandes cobrem a parede descendo do sótão, mas cortinas de rosas enroladas com uma fita de renda vermelho bloqueiam a luz. Da cozinha, posso ver um parque e uma área verde coberta para crianças.
“Queria ter sua idade”, meu pai disse antes da minha partida. “Faria outras escolhas.”
Esse comentário me fez refletir sobre a minha própria decisão de deixar o país e meu medo de estar muito perto de outros homens, imaginando se todos seriam como ele: exigente, infiel, mas também insatisfeito.
Meu pai gostava de reclamar em seu apartamento de classe média com dois quartos, uma pequena sala de estar e uma vista para outros edifícios; apenas um de seus problemas.
Desconhecia o que ele queria da vida depois da aposentadoria e acho que ele também. Realmente não entendia se era possível amar de outra forma além do que aprendera em casa.
Minha mãe havia dito que pessoas frustradas gostavam de se arrepender, e por isso a importância da minha viagem para o Canadá. Ela me mostraria um novo mundo, sem tanta raiva.
“É importante que você fale sua própria língua”, ela disse.
“O que você quer dizer?” Perguntei, imaginando que meu inglês era insuficiente para sobreviver num país estrangeiro.
“Não estou falando do seu inglês. Seu inglês está ótimo, e você vai melhorar se for preciso. O que quero dizer é que você precisa ter a sua própria maneira de estar na vida, seus desejos, suas decisões”, enfatizou, como se só o fato de mencionar isto já lhe deixasse ansiosa. “Não tive essa oportunidade.”
Agora, depois de viajar por quase 24 horas, entendia o que minha mãe queria dizer. Um lugar estrangeiro pode mudar sua maneira de estar no mundo apenas por oferecer um espaço desconhecido, cheio de novas possibilidades.
Na sala de estar, a lareira está acesa, e dois sofás azuis são protegidos por uma capa de plástico. Quando entro, o Senhor Robert já está lá, as bainhas do seu pijama se arrastando sobre o tapete azul e branco.
Ele é um homem de baixa estatura, de chinelos. Meu pai nunca usaria roupas de dormir fora do quarto. Nunca relaxa, sempre vestido como se fosse trabalhar. Este outro homem, pelo contrário, parece à vontade. Eu o sigo até a cozinha. Ele tem a aparência sonolenta e parece bem calmo quando começa a fatiar o pão.
O rádio está ligado. Sem se incomodar com a minha presença, vai até a sala e pega duas xícaras numa cristaleira.
“Gosto mais de servir do melhor aos meus convidados,” afirma.
O estilo de cozinha americana é aberto, idêntica ao que vi nas séries de televisão. No alto-falante, a música clássica é de um piano tranquilo misturado com frases soltas da locutora em inglês.
Espirro. O barulho captura sua atenção.
“Bom dia,” ele diz em português, puxando uma cadeira. “Como foi sua viagem?”
Descrevo minha viagem num inglês precário, cansada de ficar em silêncio. Ele é paciente e move as sobrancelhas, como se acostumado a ouvir. Mais uma vez, penso no meu pai, e nas suas reclamações diárias sobre clima e a política do país. Não me lembro dele me perguntar sobre meu dia.
“Todos os canadenses ouvem a CBC?” Pergunto, tentando parecer natural, sem saber como conversar com um homem que acabei de conhecer.
Ele levanta os ombros. “Realmente não sei.”
Ele usa imperceptíveis óculos redondos e que cabem muito bem sobre seu nariz fino e delicado. Além de parecer mais jovem. Talvez ele seja apenas diferente e mais atencioso, até por não ser meu pai. Me pergunto como deve ser estar casada com um homem como este e me sinto imediatamente envergonhada dos meus pensamentos. Ainda estou tentando entender a minha própria voz.
Seu nariz não tem pelos saindo pelas narinas e também não tem as mãos peludas. Sua gentileza me é desconhecida, estranha. Só conheço homens de pele bronzeada e olhos castanhos. Seus olhos são penetrantes e azuis como os de um gato angorá.
Ele sorri e me entrega uma xícara vazia. A música continua tocando. Impresso na porcelana: Sistema Único de Saúde.
“Você é médico?” Eu pergunto.
“Professor de música”, ele responde.
Talvez se meu pai tivesse tido mais oportunidades, teria sido um homem diferente, menos amargo, minha mãe sugeriu. Sinto-me culpada por julgá-lo. Mas é difícil saber que tipo de mulher eu sou. Ainda não tenho namorado, apesar de ter 18 anos. A maioria das garotas da minha escola já tem, mas sou tímida e confusa. A pressão de se casar é uma preocupação de muitas meninas no Brasil.
Duas fatias de pão saltam da torradeira, interrompendo meus pensamentos. O Senhor Robert pega a chaleira elétrica e derrama água na caneca.
“Você quer café?” Ele pergunta.
Não sei. Ninguém nunca me fez essa pergunta antes. Em casa, só bebo chocolate em pó com leite. Ele abre um pote de café instantâneo e me dá uma colher. Adiciono a mesma quantidade no meu como ele faz no dele. A mesa de madeira ocupa metade da cozinha. Há um jornal enrolado num saco plástico.
As solas de borracha dos meus sapatos fazem barulho contra as azulejos da cozinha. De vez em quando encosto a mão na mochila no chão, tentando aparentar naturalidade.
“Sua aula é às nove?”, ele pergunta.
Eu aceno sim, tomando o café amargo com dificuldade. Ele come o pão com geleia. Um fio vermelho escorre entre seus dedos. Sem entender porque, quero tocá-lo, tornando a estranheza daquela encontro ainda mais anormal. Não me lembro de ter abraçado meu pai antes de viajar. Em vez disso, desembrulho a capa de plástico do jornal.
“Tenha uma boa aula”, ele diz. “Mais tarde você conhecerá minha esposa e filhos.”
De pronto, sua fala apaga minha fantasia. De repente me sinto exposta e saio correndo da sala, me dando conta que vou me atrasar para a aula. É quando vislumbro um possível futuro: uma casa como aquela, garantia de identidade fora do mundo da minha família. O que não sei se é possível.
Sinto um aroma de lavanda e hortelã ao passar por um armário com temperos. Perto da entrada, há vários sapatos empilhados, de diferentes tamanhos, numa cômoda. Lá fora, o ar frio cobre minha pele, apesar do casaco longo de lã merino. Acho o ponto de ônibus do outro lado da rua. Os assentos são macios e dentro há mapas, diferente do transporte público no Brasil onde tudo é precário e há placas retangulares presas a troncos de árvores nas avenidas.
Ainda assim, sinto falta de lá. Aqui, a luz cinza de novembro deixa tudo monocromático. Nesta época do ano há muito sol no Brasil, mangas e caqui brotando.
Sozinha de novo, sinto-me aliviada. No ônibus, pessoas falam apressadamente, e as palavras são ditas sem pausas, diferente de como aprendi na escola.
Entro na sala de cadeiras pequenas, e encosto minha mochila contra a parede. Os alunos têm a mesma idade que eu. A professora usa um vestido amarelo com flores azuis e não parece ter frio, tirando a jaqueta e expondo sua pele branca. No intervalo, os adultos bebem chá e café. O sino toca.
Sem jeito, esbarro num garoto à minha frente subindo as escadas. Distraída, peço desculpas em português, desculpe. Seu sorriso é aberto e receptivo.
“Você é brasileira?” Ele pergunta com sotaque.
“Sou,” digo, meu coração batendo rápido, me apressando em direção à sala.
Ele me segue.
“Meu pai é brasileiro, mas sou da Espanha”, explica. “Vim aqui aprender inglês. É um prazer conhecê-la. Sou Juan.” Estende a mão e lhe comprimento meio de lado enquanto caminhamos.
Aflita, me sento no fundo da sala, folheando a gramática compulsivamente, esperando encontrar as palavras necessárias para me descrever. Vez ou outra, vejo Juan me olhando. A professora distribui uma lista para ser memorizada.
Meu próprio mundo, velado por dentro, começa a falar, me surpreendendo. Me aproximo de Juan e praticamos os exercícios juntos, respirando mais fundo sempre que estamos perdidos ou sem palavras.
Publicado em inglês em This Place is a Stranger: Canadian Women Travelling Alone.