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O supermercado é uma ilha segregada, localizada entre favelas e realidades opostas, cruas. O mamão maduro me dá a sensação de que é feito de ouro e nunca apodrecerá — extraordinária beleza de brilho e cor.
A gerente passa por mim e seu olhar penetrante não é suficiente para me impedir de pensar em voz alta: você me despreza. Ela não entende que eu, também, faço parte desta inquebrável nação. Tal espécime, expert do invisível e do além, ela representa o fascínio cartesiano deste país confuso.
Mamão maduro na mão, sinto uma sinistra presença. Não é só a gerente. É uma espécie de enclave de almas ancestrais. Afasto um incontrolável desejo de fugir dali.
A gerente eficiente, amante das caixas registradoras que um dia a substituirão, bloqueia meu caminho.
Irritada, e com medo de aparentar imprudente, paro, temendo que ela pense que eu seja a tal presença sinistra. Mesmo que queira, não sei explicar o que sinto, não aqui, no meio de tantas senzalas.
Passo pela barraca de frutas e quando estou prestes a chegar à rua, alguém me derruba. O que está acontecendo? Vejo uma multidão correndo tentando acudir um oceano de pessoas que deitadas no chão.
“Meu telefone!”, a garota grita. O que é ainda pior (ou melhor, sua mãe afirmará mais tarde) é que o aparelho é destruído, mas não antes de protegê-la de uma bala perdida.
Coisa de louco. Lugar errado, telefone em mãos na hora certa. Nenhuma outra explicação plausível.
“A gente se sente um pouco perdida, não?” A garota afirma, aparentando ser adulta. Mas logo se distrai com a mãe, que a cobre de beijos num reencontro.
No caminho para casa, meus músculos rígidos me revelam o trauma: medo e alívio a cada passo. Minhas pernas tremem tanto que preciso me sentar na calçada. Esperar até que a tontura pare.
É quando penso na garota. Suas tranças e seu telefone quebrado. A bala, que zuniu por mim e quase me atingiu, eu encontro mais tarde no meu bolso. Impossível que ela esteja ali comigo, mas ei-la.
Chego à conclusão de que devo agido como sonâmbula, trazendo-a comigo entre meus dedos suados: ela e o mamão.
Guardo-os comigo. Isso será minha lembrança de quase morte, num pertencer.
Quando era pequena, tinha o hábito de embrulhar frutas verdes num jornal usado, fazendo pequenos buracos no papel com um garfo para acelerar o amadurecimento.
Como vim parar aqui?
Estou cansada, triste. Na calçada, acompanhada do meu lindo mamão, quero chorar, ir embora com algo além desse objeto de cobre de uma terra sem dono – minha lembrança macabra.
Publicado em inglês em Gertrude.