A Rede Azul

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A rede é azul. Está pendurada na beirada do prédio. É uma rede de proteção para pequenas formigas que se sintam tentadas a mergulhar de cabeça, Simão imagina. Alguém deve ter esquecido aquilo ali quando pintaram o prédio, o homem da pizza irá comentar, quando entregar a pizza mais tarde. Na pia, os pratos se acumulam, e os insetos circulam ao redor das sobras, procurando por comida. Eles não têm qualquer dignidade, Simão pensa quando vê a cena.

O novo dia amanhece colorido. O espremedor de limão vermelho que a mãe comprou na loja de um dólar ocupa toda a bancada da cozinha. Ela segurava aquilo quando a maca foi empurrada para fora do apartamento. Ele não sabe bem se sonhou ou se aquilo realmente aconteceu. Sua memória é lenta por causa das drogas que têm recebido. Se soubesse que iria se sentir tão lesado, teria preferido morrer, conclui, balançando a cabeça. Melhor não argumentar com a morte.

A piada só é possível porque ele sobreviveu. Mas e se estivesse morrido? Ele falhou no ato porque, conscientemente, não quis suceder, enquanto inconscientemente, mirava a queda. Agora se sente julgado por todos pelo erro. O constrangimento é uma mistura de desapontamento, enquanto as memórias ruins ainda perduram. Ele tenta tirar aquilo da cabeça, apagar as sobras. Ninguém se preocupa com ele da forma como fizeram enquanto esteve hospitalizado. No fundo, gostava da atenção. Em casa, se entedia. No hospital checavam seus sinais vitais, o alimentavam, faziam perguntas – era um alívio. Em casa, não confia no próprio corpo, nos impulsos e pensamentos desconectados.

Ele aperta as formigas uma por uma até que elas estejam impedidas de se locomover. Porra, grita, quando uma delas pica o seu dedo. Filhas da puta, exclama, empurrando o pote de mel da mãe para longe, num local mais seguro. É o que ocorre quando sente raiva, fúria. As formigas continuam avançando e ele preferia não estar ali, sozinho na cozinha, mesmo com os pais na sala esperando a pizza chegar.

Depois que deixaram o hospital, Simão tenta tranquilizá-los de que tudo ficará bem. Na verdade, nem mesmo ele sabia o que tinha acontecido. Não faria aquilo de novo, prometeu, mas dizer isso era tão paternalista quanto infantil da sua parte. Ninguém poderia imaginar esse acontecimento há alguns anos atrás. Havia outros problemas.

Tem certeza de que está grávida? Seu pai perguntara à futura mãe de Simão. A pergunta de Paulo, 35 anos, surpreendeu Maria, que tinha acabado de completar 20 anos. Simão nasceu sob a lua cheia, mas não foi uma concepção fácil. Demorou bastante até que viesse ao mundo. Pode me passar o ketchup, filho? Paulo pede. A pizza chegou e todo mundo está plantado de frente à televisão. Simão está grogue, lento para acordar. O pai se recupera de um ataque cardíaco, numa rotina de quem come sem medida.

Nada mudou, Simão pensa, o homem a ignorar as obstruções das coronárias novamente. Grama urbana, gorda e verde, é o novo lanche saudável, diz Paulo à esposa. Ele promete que vai entrar num regime. Paulo fará tudo que o médico diz, afirma seu pai, dirigindo-se a si mesmo na terceira pessoa. Ele se orgulha de carregar o nome do apóstolo, uma herança da própria mãe, a avó de Simão. O pai acredita na ciência. Vou comer minhas verduras e grãos eventualmente, enfatiza, mastigando a massa de trigo integral nos fins de semana.

Com a boca cheia, Simão acha difícil de entender como as costas do pai, largas como um oceano, podem protegê-lo de um coração tão fraco. Seus genes devem ter enfraquecido os meus, Simon pensa, observando-o num ato devorador. Melissa vai me deixar porque eu não sou o bastante, não melhoro, avalia, seus olhos no espelho. É assim que a narrativa se estabelece. Quando se dá conta está numa cama de hospital. Ficar grogue e anestesiado deixa os pensamentos mais letárgicos e sob controle. O que passou na sua cabeça? Seu pai perguntou, indignado de saber como alguém poderia perder o controle de si mesmo por causa de uma menina.

Simon queria se desculpar pelo que tinha feito, mas em vez disso deu um murro na cama, um anjo segurando suas mãos. Sua mente tem caminhos tortuosos, ele quer explicar, sussurros indo e vindo. Maria não imaginou que a conversa do marido com o filho fosse começar assim. Seu filho estava inconsciente fazia quase uma hora e ela pedira a Deus perdão pelos seus atos. Paulo não estava interessado em suas orações.  Havia esquecido da história do nascimento do filho ou quanto tempo a esposa esperara para ficar grávida. Ela acreditava em intervenção divina, mas Paulo recusava aquela versão da história. Quem desafiava minha fé me deixa mais forte, ela dissera.

No entanto, nunca imaginara ver seu filho numa cama de hospital. Ao menos não morreu, ela racionalizara, tentando ser positiva. Ele estava fora de controle, quebrando espelhos, empurrando a cômoda, fazendo muito barulho, assustando os vizinhos, ela contara ao amigo Davi. Todas as coisas materiais são substituíveis, ele dissera, tentando acalmá-la. Simão gritou com o pai no hospital. Eu não conseguia me defender das vozes e queria sumir, o filho explicara, em prantos. Maria lhe abraçou, esperando que Paulo não lhe provocasse novamente.

Tenho certeza de que você vai superar isso, o pai disse, como uma estátua de pedra antes de sair do quarto. Maria gostaria que Simão não desse tanta importância ao que pai dizia. Ela tinha aprendido a se comportar dessa forma com o marido. Ele acha que todo mundo precisar pensar como ele, Simão argumentara, a cabeça estourando.

Seu pai vê tudo preto no branco, ela explica, relembrando que uma semana atrás era Paulo o paciente numa cama de hospital. Simão acenou com a cabeça e pediu um espelho à mãe. Seu rosto parecia ainda maior, suas palavras amplificadas. As veias na sua testa estavam enormes, largas. A mãe segurara seu braço. O que você esperava ver? Ela perguntara.  O filho se sentia desconfortável. Parece que eu bebi além da conta e estou de ressaca, dissera.

Naquele dia, tivera a impressão de que estava fora de seu corpo, uma voz lhe dizendo o que fazer. Na cozinha, exceto pelas formigas correndo de um lado para o outro, tudo parecia dentro da normalidade. O som da televisão alto, antenado no jogo de futebol. Simão avisara ao médico no hospital que as drogas não iriam mudariam seu temperamento. Estava apaixonado e às vezes tinha vontade de quebrar tudo sem motivo. O homem concordou, mas, educadamente, aconselhou Simão a falar com um psiquiatra que prescreveria algumas drogas apenas por precaução.

Simon balançou a cabeça, implacável. Na sala, Maria sabe que seu filho evita retornar ao próprio quarto. Ela não tem ideia quanto tempo vai precisar para se recuperar completamente. Quando ela o encontrou no quarto, curvado num dos cantos, Maria enxergou um pequeno elefante, tremendo. Desde pequeno, pensava nele como um animal. Nas mãos, ele tinha uma pequena faca para abrir cartas.

Ela chamou uma ambulância porque não sabia mais o que fazer e tinha medo de pedir ajuda a Paulo. Ele não tinha tentado se matar; ela esperava convencer os paramédicos que diziam que o menino estava em choque. Simon não largou da sua mão em nenhum momento, temendo entrar na ambulância sozinho. Ela seguiu a maca com a sensação de que eles eram as últimas pessoas sobreviventes no mundo.

No dia em que Maria conheceu sua namorada, Maria a chamou de Barbie, de tão bela que era. A garota não disse nada. Melissa era realmente linda. Ou melhor: espetacular. Maria não suportava ver o filho com uma mulher tão bonita. Ele ficava meio idiota, fazendo suas tarefas do colégio, e também as dela. Prefiro morrer a me separar de Melissa, argumentara. Já no hospital, enquanto o filho era medicado, Maria se culpara pelo ocorrido.

Sugeri que ele terminasse com Melissa pois ela não lhe fazia bem, Maria dissera ao marido, que jogara o copo de plástico na lixeira, acusando-a de proteger o filho por toda uma vida. Em vez de ficar ouvindo aquilo, ela voltara para casa e limpara todas as paredes para evitar que Simão se lembrasse do ocorrido, como se todos os problemas pudessem ser apagados. Paulo sabia que seu filho era muito sensível, diferente dele, que tinha um temperamento explosivo. O garoto estava muito agitado.

O médico explicara que era comum para adolescentes da idade dele terem ataques de nervos, estresse, reforçou. Até a enfermeira dissera que o filho ia ficar bem. Não acho que ele deva parar de tomar seu remédio, Paulo disse, enquanto Maria parecia obcecada com a garota. É o que ela narrou ao amigo David, que não era seu amante, mas ela secretamente desejaria que fosse. Eles haviam se conhecido numa matinê de ópera. Sentaram-se lado a lado e porque ela estava sozinha começaram a conversar.

Paulo odiava música clássica. David a convidou para um chá, e ela foi conhecer a sua casa e o seu canário. Ele era viúvo e não a chamava de Maria, mas torta de maçã. Ele nunca dissera uma palavra negativa sobre a falecida esposa. E se sentia curioso sobre o marido dela. Indagava que tipo de homem ele era. Quando ela ligou para David desejando falar sobre Simão, ele apenas comentara que o garoto precisava de ter confiança própria. Ela se ofendeu. Se sentiu diminuída na própria autoridade.

De repente, ele parecia como seu marido. Intimamente, acreditava que os dois tinham o mesmo tipo de personalidade: egocêntrico. Paulo a encontrou no corredor do hospital, segurando o telefone como um poste. Se tivesse morrido no ataque cardíaco, Simão não teria perdido a cabeça, ela pensou, desejando a morte de ambos os homens. Sozinha com o filho, ela encontraria um jeito de ficar sozinha. Melissa não era a mulher certa para o filho. Ela não tinha ideia da história da família, imigrando para a América e sobrevivendo em um país estrangeiro.

Paulo queria que Maria parasse de contar uma história tão triste para se convencer de que ela tinha sofrido o bastante. Depois do seu ataque do coração dele, ela não se sentiu arrasada. Ele sabia que a vida poderia mudar de repente. Ela começou a fazer planos para as refeições. O que você está olhando? Ela gritou. Uma enfermeira, vestida num jaleco azul e passando como um fantasma, passou por eles, sem preocupação no olhar. Maria limpou as mãos no jeans, desejando que não tivesse telefonado para David. Paulo sabia que ela estava estressada. Agora estava suando, com ondas de calor. Em uma ou duas semanas, faria 50 anos. Ele não achava que ela estava acabada. Mas o tempo tinha passado.

Não grite. Você está histérica. Ele não vai gostar de vê-la assim, disse Paulo. Você não sabe de nada, ela gritara, deixando-o sozinho. Não ajudou em nada ligar para David. Melissa não vale nada, ela dissera, quando ela entrou na sala. Ela queria que Simão ouvisse a conversa. Queria que ele soubesse que ela estava do lado dele. Mas ele seguiu dormindo, seus próprios desejos dormentes. Era mais prático morrer por uma garota do que por um coração ruim. O que você lhe disse? Paul perguntou. Ele parecia retardado fazendo perguntas óbvias. Maria se recusava a reconhecer os atos do filho. Não estava pensando direito.

Ela lhe aconselhou a parar de ver a Melissa. O que? Mary perguntou. Só estou tentando dizer, Paulo começou a falar e parou. Você pode ver a árvore? Mesmo que você não possa, não significa que ela não esteja ali, ele completou. Simão está tão confuso, Maria continuou. Não sabe o que quer. Paulo discordava. Ela é boa para ele, Paulo defendeu, sabendo que seria difícil atravessar o controle de Maria.

Simão ouviu a discussão dos dois. Ambos falavam a verdade. Não há explicação prática de como um família funciona, ele pensou. Em casa, no seu quarto, a primeira coisa que ele faz é tomar um banho. A água estava muito fria no hospital. Melissa sabia que ele se fragilizava quando perto de sua mãe, solitário. A condição de ter que escolher entre uma delas o deixava desesperado. A ambulância chegou no meio do dia. Simon estava sozinho porque gripado e não havia ido para a escola. Ninguém de olho nele. Maria havia saído para a ginástica e quando voltou o encontrou inconsciente no chão do quarto, os pulsos danificados ou cortados, ela não conseguia se lembrar.

Ele viu o escudo que pertencia ao Capitão América pendurado na porta. A mãe havia comprado para ela quando ele era pequeno. Enquanto esperava pela ambulância, ela olhou o telefone dele, e leu as mensagens exibidas.

Ele achava que conhecia tão bem os outros, mas nem todo mundo a conhecia. Agora ela pode ouvir Paulo e Simão rindo no quarto. Há sempre a carcaça de uma grande tartaruga no oceano. É o quão perto estive da morte, ele dissera. Sessenta e oito por cento da população da América está acima do peso, Paulo respondera, mais relaxado e de volta à casa. Os outros vão morrer de um ataque cardíaco, mas não eu, o filho brincara.

Todas as manhãs, o pai bebe um copo de água de limão com o estômago vazio para limpar o organismo. Assim você manterá tudo equilibrado, explicara Paulo. É aconselhável também comer mingau de aveia com leite de amêndoas e açúcar de coco, acrescentara. Maria estava ouvindo a conversa do corredor.

Posso sentir o perfume dela a quilômetros de distância, ele dissera ao pai, quando abre a porta e sai do quarto. Ela quer saber do que eles riam tanto. Quer segurá-lo como um bebê. Mas se controla. Antes de chegarem ao quarto, ela havia se assegurado que não havia qualquer objeto afiado à vista. Não que isso fizesse diferença, ela pensara.

Se alguém quisesse morrer, morrerá. Simon está usando o suéter vermelho que Paul o havia dado no Natal. Uma rede azul envolvendo sua mão. As formigas não chegarão tão perto da borda, ele dissera a Maria. Eu as esmaguei. Não tive coragem de matar todas, apenas algumas, ele dissera. A rede em torno de seus pulsos lhe deixa parecido com um jogador de tênis. Eu não achei que estaria aqui para ver mais um jogo de futebol, ele afirma. Mas sua mãe não é fã de futebol.

Simão imaginava a vida dos pássaros emigrantes. Como eles deveriam sentir falta de casa. A tundra quase os mata também. Tudo no mesmo universo compartilhando experiências diferentes, ele pensara. Num dado momento, as formigas voltarão novamente para comer os restos de pizza que sobraram na beirada da pia.

Está tão perto do Natal que já dá para sentir o cheiro da neve, Simão dissera aos pais. Preciso comprar um pijama novo, Maria dissera, as manchas de sangue ainda presentes no tecido. Paulo e Simão trocam olhares. Paulo não consegue parar de comer batatas fritas, especialmente as com sabor trufado. Não sou sofisticado, mas gosto de coisas boas. Você come, aproveita da vida, e tentar não entrar em pânico. Essa é a ideia, aconselhara Paulo.

Dito isto, todos voltaram para a cozinha. Não há super-heróis na América Latina, só na América do Norte, ela dissera, lavando os pratos e vendo as formigas mortas girando na água, sugadas pelo ralo. Quando ela era criança, sua mãe lhe dissera isso.

Eu nunca te disse, mas na noite em que nos conhecemos, no hotel, eu estava lá para consertar alguma coisa quebrada no quarto do quinto andar, e desejara me casar com um homem como você, Maria dissera. Ele concorda, abrindo as gavetas e secando o que resta na bancada da cozinha, nenhum deles sabendo ao certo quando tempo mais conseguiriam ficar de olhos abertos, depois de tanto tempo longe de casa.

Conto publicado em inglês em The Bombay Review.