A Boneca Cacheada

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Quando visto roupas brancas, penso nas chuvas intermináveis que descem do barranco em frente à casa da minha avó, derrubando árvores e às vezes até casas. O temporal acontece ao longe, no alto, mas vestígios da água barrenta descem pela calçada, fazendo curvas pelas falhas do cimento, deixando marcas. Pelos cantos, acumulam-se detritos e muitas latas de refrigerante vazias.

Assim como a águas suja, também me sinto manchada, e Manuela me ajuda este sentimento entra em mim. Quando meu pai diz que estou muito agarrada à boneca, respondo que “só preciso da companhia dela.” Mas ele não acredita. Então hoje decido pedir proteção para ela na minha primeira Comunhão.

Mamãe obedece ao papai e regulas as minha saídas com a boneca, dizendo que eu já estou bem grandinha para ficar com ela em público. O que tento explicar é que eu não brinco, mas converso. É com ela que aprendo sobre a vida, o comportamento de todos, a forma como as pessoas conversam. Não sei se sou diferente. Gosto de trocar a roupa dela, acariciar o plástico, dar beijos na sua barriga.

Não sei por que meu pai não gosta que eu alise seus cachos. “Não é nada sério, mãe,” explico. Mas ela está com raiva, e suas pulseiras sacodem intensamente, demonstrando a sua impaciência. “É apenas uma fase,” minha mãe diz, quando meu pai chega e me encontra jantando com Manuela. “A boneca é como uma amiga imaginária,” mamãe explica.
“Você não sabe o que ela quer,” ele afirma.

Toda essa fiscalização me desanima. O que sei é que a boneca é muito inteligente, pois assiste a programa de televisão, entrevistas e muitas novelas.

Como mamãe nunca está em casa, posso decidir o que a gente vai ver entre os intervalos dos desenhos. Desde que o papai também esteja na rua, eu e a boneca podemos ficar juntas, ela é minha companheira mesmo, temos um relacionamento perfeito.

Estou parada em frente ao espelho quando mamãe entra no quarto. Manuela está sentada na cadeira. Vejo as cortinas rendadas na minha janela balançando, como se indicassem a chegada das chuvas. “Você acha que meu traje vai se sujar com a tempestade?”, eu pergunto. “Não vai chover, Sabrina,” mamãe responde.

Ela arruma a cama com dedos bastantes alongados, prendendo os lençóis por debaixo do colchão e alisando meu cabelo com a escova. “Você está linda para receber Jesus, ela afirma, quando termina de prender uma rosa branca no meu peito. “Eu quero levar Manuela comigo,” falo. “Você tem que aprender a ficar sozinha,” mamãe afirma, fechando a porta do meu quarto.

Ando pelo corredor sem saber direito o que acontece dentro da minha casa. Meu pai, quando não está no trabalho, passa horas na frente do computador. Minha mãe, antes de ir dormir, sempre para no altar e conversa com santos e crucifixos. São muitos objetos dentro de casa que falam em silêncio. Manuela é apenas uma deles. “Eu preciso te purificar você,” eu digo, segurando a boneca.

Mas, antes que eu possa dizer qualquer coisa, ela está fora do meu alcance. Mamãe beija a imagem da santa na entrada da cozinha e eu penso na boneca, sozinha no meu quarto. Eu também gostaria de ter me despedido, antes de sair. Mas não tem problema, eu trouxe um pedaço do cabelo dela comigo, e isso vai ser abençoado. “Eu tenho fé,” digo para meu pai, quando ele está lendo o jornal na cozinha.

Antes de sair, ainda olho a barra do meu terno bem-feita, a camisa engomada no espelho. A mamãe está com as pernas de fora, um vestido que deixa à mostra a sua tatuagem. Não sei porque ela escolheu um pavão para desenhar na sua perna. Tenho vontade de perguntar, mas o rádio da van está ligado e o homem fala das tempestades que estão previstas para o fim do dia.

“A mamãe também gosta de bonecas,” eu digo, sem pensar nas consequências. “Eu já te falei para esquecer esse brinquedo. Você precisa arranjar amigas de verdade,” meu pai afirma, tentando controlar a sua voz. “Você conversa com a santa, não é, mãe?” eu pergunto. “Mais respeito. A Santa é uma Santa,” mamãe responde, alisando o cabelo do meu pai, que está na direção do carro.

Mamãe está preocupada em organizar o almoço depois da comunhão. Meu pai dirige com uma das mãos, enquanto mexe com o celular na outra. O tráfico na rodovia é intenso. “Vocês são uns egoístas,” eu afirmo, lembrando a cena da novela, onde uma das artistas acusa a outra de ciúmes. “O que você está dizendo?” papai questiona, os olhos arregalados, virando para trás.

“Por que eu não posso fazer o que quero?” indago, sem resposta. Depois de um tempo, canso de ficar com raiva. A Igreja é do outro lado da cidade, perto do Centro. A gente mora um pouco mais afastado, num bairro com apenas casas e sem comércio.

“O que você estava tentando dizer?” mamãe pergunta, quando o pai estaciona o carro e começa a conversar com alguns parentes.

“Você precisa aprender a ficar sozinha, mas você está sempre acompanhada de alguém,” eu digo.

“Você estava beijando a boneca na boca, Sabrina,” ela afirma, ajeitando o meu cabelo.

“Eu?” pergunto, sem compreender o que ela diz.

 “Você é muito pequena ainda para ficar beijando alguém na boca, seja lá quem for,” ela diz, respirando aliviada quando finalmente eu entro na fila, junto com as outras meninas.

“Por quê?” eu insisto.

“Esquece isso, Sabrina,” ela completa, com cuidado ao andar pelo pavilhão de terra vermelha.

Ela para na entrada da igreja, onde papai conversa com muitos conhecidos. Os degraus estão desgastados, a pintura envelhecida, mas a aparência geral do local é de festa. Uma senhora de vestido amarelo, com laços vermelhos, cabelo tingido de loiro, toca meu rosto e belisca minhas bochechas.

“Você é uma boneca,” ela elogia.

Ninguém me rejeita nem me olha estranho. Alguém aí gosta de brincar de boneca, conversar e imaginar que elas são ao seu lado? Tenho vontade de perguntar. A fila dos meninos é tão agitada como a das meninas e o padre cumprimenta a todos, tentando acalmá-los. É todo mundo igual, eu penso.

Um dos garotos carrega um celular no bolso. Acho que seu nome é Breno. Percebo como ele gosta da atenção dos parentes, e quer mostrar algo na tela.

Os objetos estão todos preparados, o candelabro e vinho tinto. A cerimônia começa e o padre levanta as mãos, louvando a Deus. No meio da sua fala, um telefone toca. É do menino, que esqueceu ligado dentro do terno. Todo mundo começa a rir e imediatamente a mãe dele aparece para tomar o aparelho. Tudo prossegue normalmente.

Meio sem querer, olho para o lado e noto que os olhos dele se enchem de água. Tenho vontade de segurar a mão dele. Olho para cima e sinto frio ao ver a amplidão da cúpula da igreja. “Deus irá acompanhar vocês,” o padre enfatiza, quando tudo acaba e a comunhão é entregue. Me sinto purificada.

Todos começam a se abraçar, mesmo quem não se conhece bem. É a paz em Cristo, eles repetem, quando pais e mães lotam o altar. Decido brincar do lado de fora, com o resto da turma. Quando estou saindo, percebo que Breno está sentado perto de um santo com um manto roxo que parece se contorcer. Ele está perto da imagem e tem as mãos erguidas, como se estivesse tirando fotos.

“O que você está fazendo?” eu pergunto.

“Tirando uma fotografia,” ele responde, fechando um dos olhos, como se estivesse mirando.

Vários vasos de flores estão aos pés do Santo. O pedestal exala jasmim, e a sua companhia me faz sentir aconchego. Seguro o pedaço de cabelo de Manuela e coloco sobre o chão.

“O que é isso?” ele pergunta, fingindo fotografar o objeto também.

“É o cabelo da minha boneca. Eu quero que ela seja abençoada,” explico, um pouco sem graça.

Ele me mostra um lenço e diz que também fez uma oração para a mãe dele devolver o celular.

“Eu sempre limpo a tela com este lencinho para protegê-lo,” ele afirma.

O pano tem linhas azuis e o desenho de uma flor.

“É muito bonito,” eu digo, andando com ele até a saída.

Ouço o trovão ao longe e tenho medo da chuva que se aproxima. É nesses dias me sinto mais medo. Seguro a mão de Breno o puxo até a van.

“A gente pode brincar juntos?” eu pergunto para a minha mãe quando a encontro conversando com um dos padres.

“Cadê a sua mãe?” meu pai pergunta, quando vê o menino.

“Meu nome é Breno,” explica.

Depois de procurar pelos pais de Breno e todos se apresentarem, eles aceitam o convite para almoçar na nossa casa, já que a mamãe está fazendo uma reunião de família. No caminho, começa a chover forte, e eu penso nas águas lamacentas que descem o morro perto da casa vovó, e o lixo na rua.

Apesar de sair do carro com cuidado, noto que a barra das minhas calças brancas tem traços de poeira avermelhada do estacionamento da Igreja. Aliso a minha perna e me sinto ainda mais abençoada. Minutos depois, quando estou conversando com uma das minhas primas, Breno aparece com o celular no bolso.

“Deu certo, minha mãe me perdoou”, diz ele, contente.

“Vamos pro meu quarto comigo,” eu digo.

Quero ver se o mistério da purificação também aconteceu lá dentro. Abro a porta e vejo que a boneca está guardada dentro do armário. Parece calma e apaziguada. Breno me conta que tem um aplicativo no celular onde a gente constrói casas e montas as roupas de vários bonecos, e é disso que ele mais gosta de brincar.

“Você quer ver?” ele pergunta.

“Pode ser,” eu digo.

Do corredor, vejo que minha mãe me observa ao andar de um lado para o outro com um prato de arroz de forno nas mãos. Ela sorri e parece aliviada. Fico pensando na quantidade de novidades que terei para que contar à Manuela depois, quando todos forem embora. A chuva cai, meu terno está manchado, mas eu me sinto com menos medo na presença de Breno. Em poucos minutos ouço meu pai chamando para almoçar e voltamos para a sala, apesar de ainda estarmos no meio da brincadeira.

Conto publicado em inglês em On The Rusk.