Trinca dos Traídos

Conto de Iacyr Anderson Freitas

Tradução para o inglês por Desirée Jung

No adultério há pelo menos três pessoas que se enganam.
Carlos Drummond de Andrade

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A despeito de tudo, nunca se julgou um homem amargurado. Sofria às vezes de um severo desencanto. Essa palavra lhe feria o estômago. Desencanto, enfado. Ou coisa que o valha. Casado há trinta e cinco anos – e muito bem casado, como gostava de repetir para os filhos no almoço de todos os domingos. Quis o destino, no entanto, que outra mulher, trinta anos mais nova, fosse lhe retirando, dia após dia, a ênfase do jargão e do lugar-comum. Por fim, já não insistia mais na frase fácil, cujo sumo se desfizera, havia tempos, da loquacidade e da pompa.

Ele tinha uma amante: e a existência dessa aventura começou a dar cabo de seu antigo desencanto. Sem anúncio, nascia de seu corpo um novo homem. Não era difícil perceber a mudança. Mais alegre, mais jovial e muito mais vaidoso. Sua esposa bem que desconfiara, assim como os filhos, mas ele não deu ao fato maior importância. Era a hora de viver a sua vida. Assim dizia para si, tateando as palavras. Vivera até os cinqüenta e oito anos em função de. Vivera para. Vivera por. Agora era o momento de viver apenas, tragando bem fundo toda a intransitiva grandeza desse verbo.

Quando o caso começou – quase por acidente, aliás -, achou que tudo não passaria de uma rápida aventura. Que seria fácil reter nas mãos as rédeas do jogo. Fácil? O que se seguiu foi antes uma convulsão, um atropelo. Uma verdadeira falta de ar. Ao final, percebeu que se enganara. E que, de quebra, estava apaixonado. Decidiu então colocar o assunto em pratos limpos. Afinal de contas, não seria surpresa alguma. Sua esposa já devia imaginar o que sucedia. Apesar das aparências, desde muito o casamento se acabara. Faltava apenas oficializar a separação e, o que era sempre motivo de algum sobressalto, partir para uma nova vida conjugal. Como era menos custoso começar pelo lado bom da festa, resolveu se abrir com a amante.

Pela primeira vez, pensou, iria conversar francamente com alguém em sua vida. Principiou expondo uma fixação que jamais acreditara ter coragem de dizer a quem quer que fosse. Mas a coragem veio e, com ela, aquele modo desesperado de tentar reunir palavras que fugiam. Por onde iniciar? Respirou fundo, como se buscasse algo mais que o ar escasso daquele fim de tarde. Pois bem: quando ele se casou, num dia frio e chuvoso, sua esposa contava dezessete anos de idade. Era quase uma menina, rompendo a custo as malhas últimas da infância e deixando ainda à mostra, por mera provocação, as digitais do casulo recém-partido. Ele, um homem apaixonado. E o casal chegou a viver, como de costume, um período inicial de relativa felicidade.

Mas logo após a primeira gravidez, para a sua tristeza, a luta da esposa contra o excesso de peso não conheceu um minuto sequer de trégua. Nem trégua nem sucesso, aliás. Em decorrência disso, a cada dia, numa marcha irrevogável, a sua angulosa vaidade de mulher acabou perdendo o viço. No lugar, doendo, tomou posto um certo modo intratável de senhora resignada.

Desde então – e para declarar tal coisa precisava tanger delicadamente a fala, que parecia se atirar garganta abaixo – ele só fazia sexo com a mesma menina de dezessete anos de idade. A moça com quem se casara e, por obra das muitas trapaças do destino, não mais existia. Uma morta. Por isso, nos momentos de prazer, tinha de fechar bem os olhos e descerrar os cadeados da memória. Tinha de pensar na garota de dezessete anos, escondida em alguma parte do corpo daquela estranha com quem se encontrava casado.

Uma presença que florescia às vezes no modo como ela puxava a barra do vestido, no jeito esquivo de sorrir ou de lhe dizer que estava pronto o almoço.

O mais terrível é que ia ficando cada vez mais difícil, revolvendo a medo os cômodos escuros do seu passado, salvar do limbo aquela escultura fixada na adolescência. Por fim, era-lhe quase impossível. Não tardou muito para que o sexo acabasse se tornando um duríssimo fardo. Até desaparecer por completo. Quer dizer, resolvia-se sozinho, como podia – e isso o envergonhava.

Diante de tal contingência, entre azulejos e peças de louça branca, ele também voltava aos dezessete anos. Era um garoto exercitando o seu corpo para o assombro. Ao final, o vazio e o asco. Um choro surdo lhe dizia que regressara enfim ao mundo. Que nascera. E que não se podia mesmo nascer sem dor, ainda mais largando atrás de si a imagem desejada, mil vezes desejada, em cada fração de gozo ou de contentamento, para só então tornar a ser, como num avesso passe de mágica, o mesmo senhor de cinqüenta e oito anos de idade. O senhor de quem ele fugia.

No íntimo, sentia-se obrigado a dizer tudo isso. Deixar bem claro o que se passava. Era premente o seu desamparo. Urgia demarcar, embora a giz ou a carvão sobre seus próprios ossos, a importância da amante em sua vida. Foi através dela – de seu modo sempre diverso de ser mulher e criança ao mesmo tempo – que ele acabou se libertando da fixação pelo passado de sua esposa. Através dela calcara novamente os pés no mundo. Doravante faltava-lhe apostar, jogar o resto de suas fichas no próximo giro da roleta. E lançar ao fogo os dias idos.

Revelara tudo, afinal, para a amante. Mirando o espelho do teto, aguardava o que poderia ser um primeiro e decisivo passo, uma resposta, um comentário qualquer ou, ainda assim, pelo menos um simples e cordial aceno. Mas foi inútil. Chegou a juntar uma pequena série de reticências e pontos de interrogação. E viu a fala da amante recuar na noite que surgia. Ele estava só. O que ela lhe dissera aumentava mais e mais, a cada desesperada tentativa de compreensão, a sua orfandade. Ainda agônica por sob o rol de palavras prontas que recebera.

Tudo o que a amante lhe falara calava fundo agora. O modo como ela articulava a custo cada frase, dizendo que ele estava levando toda aquela aventura demasiadamente a sério. Na realidade, as coisas não eram bem assim. Ela o via como um verdadeiro pai. O equilíbrio que sempre faltara em sua vida. O companheiro de todas as horas. Por isso, seria melhor para os dois se tudo terminasse sem maiores seqüelas. Se continuassem como grandes amigos. Se dessem tempo ao tempo. Ele não sabia o que dizer.

Perdera, de súbito, o leme da linguagem. Ao chegar em casa, tentou domar o caos circunstante. Mas não conseguiu. Procurou reconstruir cada nesga, cada liame de palavras, contudo não encontrou o menor sentido. Por que tornara-se um pai quando tentara, com todas as forças, ser apenas um homem?

Então percebeu o engano. Ou os enganos. Percebeu que, na verdade, a amante nunca o viu do modo como ele realmente era, assim como, durante todos os anos em comum, ele também não chegou a conhecer de fato a mulher com quem se casara. Sentado na sala escura, com a cabeça entre as mãos, foi puxando o fio que engendrava o labirinto. E já notava, próxima e ofegante, a respiração do minotauro. Ali, sozinho e sem passado.

Nesse exato instante, sentiu a aproximação de sua esposa. Sem sequer se dar o trabalho de acender a luz, ela parecia entender o que se passara.

“Aceita um café?” Ele levantou a cabeça e voltou a se deparar com o erro.

Compreendeu que estavam todos cegos, cegos e condenados, que seria muito difícil, para qualquer vivente, atravessar aquele oceano de esquecimentos e encontrar, do lado oposto, o consolo de outras pessoas. Viu que não conseguira apenas trair sua mulher.

Não: eram três os traídos. Antes de tudo, enganara a si mesmo. Poderia haver amor diante de tamanho equívoco?

Foi quando, esboçando afinal um leve sorriso, decidiu tomar o café bem forte.

Conto publicado em The Dallas Review.