Conto de Iacyr Anderson Freitas
Tradução para o inglês por Desirée Jung
Y aquel mar, que se mueve a vuestro lado,
Es la promesa no cumplida de una
Resurrección.
Alfonsina Storni
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O primeiro susto se deu ao verificar as suas anotações de leitura num velho volume de Alfonsina Storni. Volume que ele, com toda a certeza, jamais havia lido. Folheando as páginas amarelecidas e bolorentas, constatou que aquelas eram, sem dúvida, as suas anotações. De próprio punho, com o mesmo lápis rombudo de sempre. O problema é que – escavando a memória com as unhas, martelando-a contra seus próprios ossos – não se lembrava de, um momento sequer, ter se debruçado sobre aquele livro.
Mas não podia negar que o tinha saboreado. Palavra por palavra. Lá estava a sua letra, o seu modo peculiar de demarcar as passagens relevantes, os seus obtusos pontos de exclamação, tudo muito bem espalhado através de diversas páginas. Ainda tonto e assustado, sem compreender direito o que se passava, começou a procurar na estante outros títulos que, ao que se lembrava, decerto não havia lido. E seria assim difícil de descrever o seu sobressalto – aquela fila interminável de interrogações -, a sua surpresa ao se deparar, em quase todos os tais exemplares, com o mesmo rol de rasuras e pequenos comentários: com que meticulosa aplicação ele também os tinha lido!
Sozinho no meio do escritório empoeirado, imaginou, sorrindo, que o tempo tinha posto para funcionar, na sua cabeça já um tanto cansada do pastoreio das palavras, uma delicada máquina de de ler. Qual uma borracha invisível que, aos poucos, fosse apagando da sua lembrança as obras mais antigas. Ou, melhor dizendo, mais antigamente lidas. Método incômodo e inusitado esse, mas que possuía pelo menos o incontestável mérito de lhe devolver, frescas e vivas, agitando-se na cal virgem do ineditismo perdido, algumas leituras feitas há muito.
Apesar de todo o desconforto, do pasmo que crivara de zeros o seu passado, poderia deixar, afinal, de comprar novos livros. “Tudo tem seu lado bom.” Seis mil volumes – essa era a sua biblioteca – bastavam, e com boa folga, para um belo retorno. Completo e sem máculas. Os anos que lhe restavam de vida – ainda não era um velho – poderiam ser muito bem aplicados na releitura de livros que, para ele, tornavam-se mais inéditos a cada dia.
Foi quando, brincando de si para si, teve a súbita certeza de que o tempo guardava, na boca sempre escassa dos viventes, o sabor inominável das primeiras coisas. Pouco importassem os motivos. Haveria de pulsar com renovado brilho, mais dia, menos dia, o ardor arcaico da origem. Era esse o sumo, o condimento da própria vida.
“Toda uma metafísica poderia ser construída à sombra dessa idéia”, pensou, “preciso anotá-la”.
Radiante, já que andava órfão de achados, sem conseguir escrever uma linha sequer, levantou-se para procurar seu caderno de apontamentos. No meio do caminho, no entanto, antes que botasse os olhos no caderno, foi agarrado pelo neto que acabara de chegar de viagem. De quebra, teve também de dar atenção ao filho e à nora, já que desde muito não os via. Entre um afazer e outro, acabou se esquecendo de anotar a tal “grande idéia” naquele dia, deixando-a escapar de seus olhos.
Dois meses depois, ao sair de um consultório médico, lembrou-se do bendito achado. Era um verdadeiro consolo resgatá-lo ali, no meio do trânsito engarrafado e do calor terrível daquele fim de tarde. Procurou um pedaço de papel. Não havia. Revirou os bolsos e a carteira. Nada.
“Não posso me perder dessa idéia”, disse em voz alta, “tenho de anotá-la assim que chegar em casa”.
Estava feliz por resgatar do limbo a chama que lhe permitiria – quem sabe? – acender um novo livro. A chama que nascera exatamente do esquecimento de outros livros, e que enfim, depois de ser também esquecida, voltava para lhe dizer que sua memória ainda sabia colher da terra o essencial. Que nem tudo estava perdido.
Olhou, com um calor estrangeiro, a noite que já começava a escalar o dorso desolado dos relógios. “Não posso me perder dessa idéia”, sussurrou ainda. Tocado pelo bafio daquela lembrança, agarrando-se palmo a palmo aos edifícios, o anoitecer lhe pareceu mais belo. Ele sentia-se pleno, em paz com o mundo, surpreendendo assim, sem pressa, o lume de um azul que não fugia. Era quase uma criança então.
“Não posso…”, voltou a insistir. E se esqueceu.
Conto publicado em Obra/Artifact.