O Mensageiro

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Sol seca suas lágrimas nas mangas, chorando.


“Por que não posso ser normal como uma maçã?” Ela se pergunta enquanto espera.


Clara, sua amiga, aparece na porta. Rapunzel, duas tranças em cada lado sob os ombros, um pijama vermelho e preto, confortável. Pelo que parece, ela ainda não saiu de casa e só ouviu o som da campainha porque estava alimentando a pomba na sala. É seu novo animal de estimação. Ela adora.


“Vou enviar uma mensagem num papel enrolado, preso em suas pequenas pernas. Sabia que ainda fazem isso?” Clara pergunta.


“Para onde vai enviar a mensagem?” Sol pergunta, esquecendo suas lágrimas por um momento.


“Eles podem voar até 1800 quilômetros para entregar uma mensagem,” explica Clara, sem responder à pergunta.


Clara dá passagem e Sol entra.


“Incrível,” diz Sol, momentaneamente distraída pela pluma branca, imóvel como um animal de pelúcia. Mas logo recomeça. “Tenho que falar contigo,” diz, da mesma forma como disse a ele. “No filme, os imigrantes estavam chegando à França, mas os nazistas não os deixavam ficar. É a crise dos refugiados novamente,” ela reforça. “Ele estava tocando violão e não se emocionou,” Sol explica, agitada. “Não sei porque algumas pessoas não se comovem com certas coisas,” completa.


“Mas afinal, qual é o problema?” Clara pergunta, esperando ter tempo de desfrutar do café, apesar da visita inesperada. Precisa, ainda, mudar o jornal na gaiola da pomba. Desde que comprou o pássaro, começou a vigia-lo constantemente, limpando-o com um pano molhado muito delicadamente, como se tivesse asas de borboleta.


“Ainda não achei uma forma de falar com a pássara,” diz Clara. Ontem, a mulher que dormiu comigo disse não confiar em mim. Culpa da pomba,” enfatiza, limpando os olhos, ainda com sono.


Sol não entende os relacionamentos de Clara. O que é um par perfeito? Ela se pergunta, esquecendo suas dores por um momento. Se há alguém te esperando no mundo, toda vez que você encontra esse alguém é a hora certa, não é? Clara argumenta, sempre com convicção. Sol não aplica a mesma lógica nos seus relacionamentos. Quando conheceu Rob, era muito dependente, queria a afeição das pessoas porque não gostava da solidão.


“Preciso te contar sobre Rob,” Sol insiste. “Acho que há outra mulher.”

Clara moe o novo café que comprou na Granville Island. Torrefação Petit Ami Médio. Na verdade, queria mesmo era usar o grão aromatizado do Safeway, porque ama o sabor da avelã, mas como tem visita na casa, decide fazer o sem sabor. Os grãos brilham e têm uma aparência aveludada. Este é o melhor momento do dia e ela não pode apreciar.


“Não deveria ter vindo aqui, mas não sabia para onde ir. Estava sozinha e tinha essa sensação de ansiedade,” justifica Sol.


“Às vezes, quando a gente acha que sabe o que quer, pode também se surpreender ao se descobrir livre desta mesma coisa,” Clara afirma.


“Eu não sei o que me aconteceria,” Sol confessa, lembrando das mercadorias chegando na loja e como ela deveria estar lá trabalhando.


“O que vai me acontecer?” Sol indaga. “Eu vi um anúncio na Internet de uma bolsa Givenchy, e foi como um sonho. Não acreditei. Fui conferir, estrela branca em couro: zíper bidirecional, alça ajustável, bolso interno e externo, couro de pele de bezerro, feito na Itália. Linda, uma bolsa de grife,” ela resume.


“Então, eu disse ao Rob que se fosse rica compraria esta bolsa,” diz. “E sabe o que ele disse?”


Clara cheira o café moído, um pó fino muito marrom. Refrescante. Ela não usa colher e joga uma certa quantidade intuitiva na prensa francesa. Ela se sente melhor agora que a água está fervendo e o café na espera. “É um exercício de paciência saber o que você quer,” diz Clara.


“Verdade?” Sol pergunta.


Que tipo de mulher é Clara? Magra, e claro que isso incomoda sol porque ela não é assim tão magra. Dorme sozinha, mas muitas vezes dorme por aí. Elas se conheceram na faculdade quando Sol era nova na cidade e precisava de uma amiga.


“Mas você é única. Tenho certeza que ele pensa assim também,” diz Clara.


É o que Clara pode dizer neste momento, especialmente para alguém como Sol que não consegue viver sem relacionamentos. Clara faz o café, o borbulhar e o aroma próximo da perfeição.


“Ele me disse que eu era supérflua e só queria coisas caras,” Sol continua.


“Por que se importa com o que ele pensa?” Clara pergunta.


“Claro que me importo,” Sol grita de volta, odiando quando as pessoas têm opiniões a seu respeito.


Dentro da gaiola, a pomba branca começa a bater as asas quando o tom de voz de Sol se altera e um outro pombo pousa no parapeito da janela. Clara havia deixado uma isca na noite passada: um pedaço de bolo. Está feliz por ter atraído um amigo. Quer testar a interação da sua pomba com o mundo social.


“Não quero julgar o desejo de ninguém,” Clara diz.


“Eu sei o que aconteceu,” Sol diz com raiva, mas sob controle.


“O novo primeiro-ministro do Canadá, todas as mulheres o desejam. Ele é um Justin Bieber,” explica Sol. “Como você acha que a esposa dele se sente?” Ela pergunta. “Ele é bonito. Mas talvez ele seja infiel, mesmo estando sob os holofotes, uma estrela. Ouvi dizer que ele não quer se mudar para a casa oficial em Quebec porque precisa de reformas. Foi onde ele passou toda a infância quando seu pai era primeiro-ministro. Tenho certeza que a esposa dele tem algo a ver com essa decisão,” Sol continua. “As mulheres estão sempre no comando,” ela acrescenta, exaltada.


“Preciso de um homem que exija o mesmo de mim. Em vez disso, tenho que estar aqui falando com você. Essa calça estava na liquidação. Você gosta? É preta, couro, muito sexy,” afirma Sol, desfilando, à espera de uma confirmação.


Clara a acha muito atraente, mas mulheres deste tipo precisam de muita atenção e dão trabalho.


A pomba branca ignora o pombo macho no parapeito da janela. Não sente cheiro da fêmea na sala, como o vendedor havia prometido.


“Ele não percebeu,” Sol insiste. “Além disso, os liberais só ganharam no Canadá porque o primeiro-ministro é tão gostoso,” conclui Sol.


“É sábado de manhã e eu quero tomar meu café em paz,” diz Clara. “Diga a que veio.”


Na noite anterior, aconteceu algo com Clara também. Enquanto fazia amor com uma mulher, a pomba lhe observava. Como se soubesse do que ela precisava. No entanto, esta manhã, se deu conta de que a gaiola estava coberta com um pano de prato e tal olhar só pode ter sido fruto de um sonho. Está sendo vigiada de novo?


“Não foi só a questão do filme que me incomodou. Foi uma outra coisa,” diz Sol.


“Eu pensei que o problema era a sua frustração de ter um namorado que não chora num filme francês sobre os nazistas e que ele está tendo um caso,” afirma Clara.


Sol fica paralisada, relembrando porque decidira vir até ali. “É verdade?” Ela pergunta. “Você está tendo um caso com ele?” Ela respira de forma ofegante e rápida.


Finalmente falou, Clara pensa.


“Ele me disse que estava te acompanhando até em casa depois da academia e ouviu um trovão e você ficou com medo, e ele te segurou e te beijou. Disse que sempre quis beijá-la. É verdade?” Sol pergunta.


Clara gostaria que fosse simples assim. “Não sei o que ele queria,” ela afirma. “Simplesmente aconteceu. Mas não, não estamos tendo um caso. Da maneira como você fala parece algo muito dramático, mas não significou nada. Se ele queria me beijar, eu não esperava por isso. Caso fosse importante, teria te dito,” Clara enfatiza, a mulher lhe observando.


“Por que você não me falou?” Sol insiste. “Achei que você fosse gay.”


“Não há romance entre nós,” Clara enfatiza, a conversa já lhe cansando. Por um momento, quando Rob lhe beijou, teve a sensação de estar beijando todas as outras garotas que ele havia beijado antes. Ele era popular. E agora Sol não tirava os olhos dela. O café está amargo, mas Clara tenta se concentrar no fato de que está sem açúcar, coado na sua própria cozinha.


“Te conheço há quantos anos? Como pode?” Sol pergunta.


“Se eu sentisse alguma coisa por um homem, ele seria a minha última escolha,” diz Clara.


Sol está confusa, Clara nota isso.


“Por que? Por vocês serem iguais? Incapazes de ser feliz com uma só pessoa?” Sol pergunta.


“Não preciso explicar minha vida para você,” Clara diz, relembrando-se da mulher da noite passada, mas não seu nome.


“De qualquer maneira, não acho que você deve sair com alguém como Rob,” Clara afirma.


A pomba voa para fora da gaiola e bate suas asas agitadamente quando vê o pombo na janela, as paredes brancas da sala se estar tornando demasiadamente pequenas para ele.


“Acho que ela se sente sufocada na gaiola,” diz Sol, aliviada de vê-la voando.


“Você realmente precisa dele?” Clara pergunta.


Sol está nervosa porque a pomba está muito próxima da janela.


“Como sabe se ela volta se voar?” Sol pergunta.


“Não sei,” Clara afirma.


“A gente não está falando de amor, então. Nem de uma combinação perfeita,” diz Sol.


Clara se senta no parapeito da janela e vê a cidade acordar.


“Fui à academia e comprei um croissant e tentei malhar, mas essa história continuou se repetindo na minha cabeça sem parar,” Sol afirma, deixando o apartamento como se nunca estivesse estado ali antes.


Quando perdeu o dia de inscrição para a faculdade de culinária, Sol foi ao Dairy Queen e pediu um especial de hambúrguer e fritas por cinco dólares. Além de um frango frito dentro de um balde com uma tabela informando os nutrientes: 1030 calorias e 59 gramas de gordura. Ela queria mudar de vida porque todo mundo dissera que ela estava desleixada depois que as duas irmãs se casaram e ela não. Mas hoje não vai comer como louca. Impulsivamente, liga para Rob, que tem a audácia de dizer que os dois não eram comprometidos. Só estavam se divertindo. Ela desliga, entendendo como não escolher alguém apenas por desespero.


“Você não sabe nada sobre mim. Você é muito egoísta,” ainda disse a Clara, antes de sair.


“Estou me apaixonando por uma pomba,” Clara respondeu, apesar de não haver mais ninguém lá.


As pessoas na rua parecem calmas e tranquilas, apesar de sua aflição, Sol observa. Um homem de camisa branca com uma placa no peito que diz nudista em ação acena do outro lado da rua. Está tentando não pensar em Clara ou no seu destino. De tudo que disse, o pior foi acusar Clara de não saber o que fazer com sua própria vida. Tudo deve ser como uma pintura de Matisse, um azul nu, ela imagina, de repente exausta chamando um táxi.


Clara se sente mais segura tendo a casa para si mesma novamente. A pomba descobriu um novo lugar no topo da estante, e parece não querer sair dali. Não há necessidade de escrever uma mensagem ou mesmo pensar em um destino, porque ele gosta de estar lá com ela, mesmo que isso não signifique nada. Ela liga para Sol e diz que sente muito, mas não pode mudar quem ela é.


No táxi, há rosários pendurados no espelho retrovisor, e Sol nunca os viu antes, familiarizada apenas com os da religião católica.


“Eu sou budista,” diz o motorista.


Ele explica que toda a sua família está no Sri Lanka. Ele mora sozinho.


“Sozinho?” Sol pergunta.


“Sempre sozinho, mas espero que não seja assim para sempre,” ele afirma, esperançoso. “Agora eu só trabalho,” ele diz.


Sol encontra seus olhos no espelho retrovisor e acena. Ele envia dinheiro para sua família, quer que estejam bem cuidados. Ele lhe mostra fotos enquanto dirige. Sua esposa e filha usam roupas coloridas, saias grandes e longos que cobrem todos seus corpos. Eles sorriem muito. Há outras pessoas ao redor deles. Eles compram uma casa com a ajuda que ele manda.


“O preço das propriedades em Vancouver é absurdo,” enfatiza.


“É verdade,” Sol responde.


Sem a esposa, ele explica que se sente perdido.


“Eu não como bem, trabalho muito, e todas as minhas roupas estão enrugadas,” explica, levantando o casaco no banco da frente para lhe confirmar. “Ela é o meu chão,” acrescenta.


Sol quer concordar, dizer que também tem alguém que cuida dela, mas não consegue pronunciar uma só palavra. Só não chora porque está mentalmente cansada.


“Dez dólares,” o taxista diz, quando chegam. Ela paga e ele não parece surpreso com a gorjeta mais alta, talvez não percebendo.


Quando checa o telefone, há uma mensagem de Clara dizendo sentir pelo que aconteceu, mas que não pode mudar quem é.


Nem eu, Sol pensa, mas talvez já tenha passado da hora.


Chegando ao trabalho, fica feliz ao ver a pintura de Vik Muniz na parede principal da loja, prova de que resíduos de lixo, chocolate e geleia ainda fazem sentido: beleza em transformação. Ela se imagina um pouco assim, feita de misturas inventadas, nem sempre fazendo sentido, num movimento incontrolável de ideias e emoções vindas de lugares desconhecidos.


Quando a primeira cliente do dia entra na loja e pede por algo bonito, Sol garante à mulher que sabe exatamente o que ela precisa. Vai encontrar um vestido que paralise a atenção de todos. Assim, tira um modelo da prateleira, e mostra para a mulher.


Conto publicado em inglês em Carte Blanche.