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Sou acordada por uma sirene longa e contínua. O som reverberante parece levantar o piso da cozinha até os joelhos. Fico de pé, parada com os pés descalços por um tempo, antes de me dar conta que estão gelados. Perdi minhas meias em algum lugar debaixo das cobertas, durante a noite. Volto para o quarto e faço uma busca e regaste, reverenciando a lógica da minha mente.
Acho o par em lados opostos da cama. Devo ter dormido com as pernas em V. Termino de vesti-las, imersa pela recorrente e prolongada sirene de nevoeiro. Desde criança, em momentos como este, me lembro contar até mil quando fora de controle ou ameaçada. Tenho o ímpeto de contar até um. Ao invés, respiro e espio através da janela.
É impossível ver o mar de onde estou, mas suficiente para perceber o nevoeiro cobrindo a rua e grande parte das árvores. O Ford laranja parado diante da minha janela está coberto com gelo, açucarado como um cupcake de cobertura branca. Dá para ver também que o asfalto está liso como sabão. Nesta época do ano, caminhar pelos becos é sempre um desafio. Por outro lado, o silêncio da cidade é o destaque da estação. E quando me sinto mais eu, aparecendo e desaparecendo entre os restos do inverno.
Hoje é a primeira verdadeira manhã glacial desde o Natal. Pratico minha caminhada todos os dias, não obstante o clima. É o que faço. Aprecio rotinas. Miro na direção da ponte, próxima à praia dos cachorros. O aroma da English Bay é avassalador. Conheço bem a região. Sento-me perto da água para ouvir a arrebentação, à frente da areia – pequenas ondinhas, de fato. A sirene incessante é uma novidade, invadindo minha mente como o olhar de estranhos, me tornando irreconhecivelmente humana. Só quando alguém com um cachorro lança um galho na direção do mar, e ouço o barulho da vareta na água, é que retorno à realidade: aparência de vida normal.
Estou com frio, como tudo ao meu redor. O cachorro sai da baía carregando algo maior que um galho na sua boca. Observo a cena um pouco mais atentamente, curiosa, tentada a me aproximar. Esteban, a mulher chama o animal. Nunca os vi aqui antes. Devem ser as férias, penso. O cão parece um pavão, orgulhoso. Pela primeira vez a dupla nota a minha presença, eu sendo a estranha, minha face tão surpresa quanto a deles. A sirene desapareceu, como também o nevoeiro.
Isso é seu? Ela me pergunta, numa acusação. O drone dependurado na boca do cachorro certamente não é meu. Mas antes de explodir, respondo que não, apesar de pensar: você realmente acha que aparento ser alguém capaz de manobrar um drone? Apesar de tudo, ela parece aliviada. Está acabado, diz, chateada que o cachorro esteja comendo o plástico. Isso não deve ser bom para ele, equivocadamente articulo, ela sequer se dando o trabalho de me olhar nos olhos.
Está chateada com o cachorro ou com aquilo encontrado morto na água? Antes de mais nada, aquilo nunca teve vida, digo a mim mesma. Você sabe de quem é esse drone? Ela continua, certa da minha participação na trama de destruição: ela e os dentes caninos. Não consumo drones, respondo, o que parece sarcástico, mas é como penso. Só faço uso de caminhadas. Vê-se que ela não aprova minha resposta. Nem tenho cachorro, é o que quase digo, mas seu marido ou sei lá o que chega carregando um bebê e tomando posse da situação.
De repente o frio me parece mais agudo. Continuo andando e pensando sobre como a paranoia pode de repente tomar conta de qualquer um. Principalmente quando começamos a especular se conhecemos alguém realmente em nossas vidas – sem contar nós mesmos. Não muito longe dali, acho o controle remoto descoberto por um corvo sob um tronco de árvore. Meus dedos entorpecidos custam para retirar o objeto do bico do pássaro, evitando que se engasgue com ossos.
Ossos? Me pergunto, confrontando meu próprio pensamento. Indago à penugem negra: você estava tentando devorar os ossos da memória? Nenhuma resposta. Alça voo assim que deposito o aparelho num container para reciclagem. Ao voltar para casa, lembro do filme Bacurau, a súbita possibilidade de ser um daqueles brasileiros do mal: tentando apagar Vancouver e a sagrada família do mapa. Imagina que louco. Balanço minha cabeça e sorrio: eis o que sou capaz de produzir e reprimir a cada santo dia, sobretudo quando faz frio e mal consigo respirar.
Publicado em inglês na revista Necessary Fiction.