Holocausto

Conto de Iacyr Anderson Freitas

Tradução para o inglês por Desirée Jung

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Mas a vida muito tranqüila é assim mesmo, uma chatice.
Rubem Fonseca

Dedilho meu método até os detalhes. Adianto-me. Prevejo. Tudo deve funcionar sem acidentes, pois o risco recorre a meu nome. Primeiro escolho os alunos da oitava série. Apenas um por sala. Não há ciência alguma nesse processo de seleção, somente uma obscura inclinação pessoal.

Em seguida, começa o jogo. Procuro, de início, instigá-los com pequenos gestos, frases repletas de reticências, olhares furtivos ao cruzar as pernas ou ajeitar o decote do vestido. Crio oportunidades de encontro, onde me cumpre riscar as primeiras letras da nossa cumplicidade. Esta fase é de longe a mais rica.

Analiso com cuidado a personalidade de cada um, toco-a com os dentes, medito. Depois lanço meus veredictos: esse carece ser mais trabalhado, está verde demais para o holocausto, aquele ali me serve ou não me serve, etc. O mais importante, no entanto, é a privacidade. Tudo precisa fluir em surdina, coisa difícil entre garotos de quatorze ou quinze anos de idade. O sucesso do jogo pode ser medido pela ausência de comentários nos corredores do colégio.

Só assim posso dar o passo seguinte. Provoco os potros que escolhi para o meu corpo. Provo-os em brasa. Vermelhos acesos, queimando. Por mais ridículo que pareça, do alto da minha experiência, eu os humilho. Faço-os mendigar cada centímetro conquistado, mas não lhes concedo meia palavra acerca das regras do nosso jogo. Que esperem. Que encontrem por conta própria a resposta. A delícia do embate melhor se revela em recato. Sem maiores explicações.

Ninguém sonha o minério que extraio de meus escolhidos, ainda rubro de dor e vertigem. De seus músculos já talhados para o ímpeto de toda a força animal. Eu os domo, para que essa força se multiplique sobre mim – e me vença. Digo: assim não quero. Façam isso. Desse jeito não. O que lhes sobra do sexo não supera, ao final, o vinagre do instinto, matéria bruta por natureza, cujo nome não existe ou não poderá jamais ser pronunciado.

Lego a meus escolhidos a certeza de nenhum refinamento. Para chegar ao cume, uma boa dose de entrega ao próprio corpo. Ao que ele, corpo, nos destina, embora ocultemos. Por isso os sussurros sórdidos, o prazer que sinto ao humilhá-los, e que eles percebem em meus olhos, como um carinho extinto.

Penso nisso enquanto espero a hora de fazer o meu discurso, fechando as festas de final de ano do colégio. O diretor me reserva sempre para o encerramento. Segundo ele, eu sou a chave de ouro da instituição, a professora que lustra os eventos e as celebrações. Mas a verdade nua e crua é que ainda me emociono. Nada mais natural. Falo apenas o que sinto.

Quando disser, por exemplo, que toda educação deve ser posta a serviço da nossa felicidade – e não do mercado de trabalho ou da mera satisfação curricular -, buscarei no auditório de pais e alunos os meus escolhidos. Eles saberão melhor, na carne, a força do que estarei dizendo. O tempero de cada palavra. Sentindo minha exposta dedicação, uma rasura leve e líquida tomará os olhos da platéia.

Toda educação deve ser um caminho para a felicidade, repetirei o mote que encerrará o meu discurso. Antes que termine a longa sessão de aplausos, o diretor mandará executar o hino nacional.

Conto publicado em Le Scat Noir.