No Dorso dos Domingos

Conto de Iacyr Anderson Freitas, traduzido para o inglês por Désirée Jung.

Muitas coisas tinham ocorrido até chegarem a esse viver suspenso sobre o vazio do dia seguinte.

Fernando Namora

Qual a importância desse fato agora? Nenhuma, eu me dizia. Mas por quê, apesar de todos os esforços, não conseguira jamais me libertar do ocorrido? Contra mim voltava-se sempre a mesma imagem, a mesma tarde que, de leve, puxava os meus cabelos para o esquecimento. O esquecimento que não vinha. Restava a certeza daquela luz sem termo, da agonia interminável das cigarras, do sol que pisava de fogos a paisagem. Tudo varrido pelo sopro de uma vertigem que, do fundo de minha infância, tornava o mundo a cada dia mais espesso, mais sumarento, mais terrivelmente inexplicável.

E já se agita, em meu passado, o menino que há muito não reconheço, então com nove anos de idade, medindo sem pressa, do alto da mangueira, a tarde que parecia ficar mais habitável somente naquele ponto esquivo do planeta, por entre a difícil arquitetura de galhos que, com seu rendilhado de sombras, tomava o quintal da velha casa. Ali eu ficava bebendo as horas que ainda me eram devidas. Por um dos muitos mistérios eucarísticos do mundo, ainda me eram devidas. Em silêncio. Ouvindo, talvez, dentro do peito, o tambor escuro girar as manivelas do sangue, a foz ou a surda voz do sangue entre as veias. Foi quando notei que minha mãe e meu tio, o irmão mais novo de meu pai, passaram pela porta dos fundos e entraram lentamente no quintal. Falavam baixo e pareciam nervosos.

Em decorrência de um grave acidente, meu pai ficara paraplégico e suportava a custo as limitações impostas pela nova realidade a que se encontrava condenado. Desde que trocara as muitas atividades físicas e a agitação da vida de negócios por uma cadeira de rodas, ninguém mais o deixava ficar sozinho. As pessoas da casa, os vizinhos, os amigos da família e os parentes todos, num revezamento sem fim, improvisavam carteados, rodas de prosa e de viola, tudo o que pudesse afastá-lo da depressão profunda a que se entregara. Minha mãe chegou a esconder os remédios, os inseticidas e o revólver que ficava na última gaveta da escrivaninha. Temia que ele ousasse o pior. E esse meu tio, que, em minha memória, continua a descer as mesmas escadas do quintal, era dos mais assíduos à casa, sempre atencioso e prestativo. Particularmente comigo, seu sobrinho predileto.

Mas ao entrarem assim pelo quintal, o certo é que ambos não se deram conta da minha presença lá no alto da mangueira. Caminharam, sussurrando de um modo confuso e desconfiado, até o fundo do pequeno jardim lateral. Ali, protegidos pela folhagem, se beijaram. Essa era a imagem que ficara para sempre em mim, como um crime: minha mãe e meu tio se beijando. Eu nada compreendera. Meus tesouros eram mínimos para compreender. Tinha em minhas posses apenas aquela mangueira, uma turva noção da tarde que se alongava pela hora de limo e de nuvens – e nove anos de inúteis interrogações. Nada além disso. Eu era um pobre, um miserável qualquer naquele momento. E ainda mais pobre e mais miserável quando ambos tornaram a entrar pela cozinha e eu percebi, ao fundo, um tanto abafada, a voz de meu pai. Aquele rosário de sílabas sem brilho, sempre sem brilho algum, que tomara sua voz após o acidente.

Cerca de dois meses depois, no dia do aniversário desse tio, um forte estrondo rompeu a porta do quarto de meus pais, como que fendendo a manhã ao meio. Quase em seguida, ouvi o grito de minha mãe. Eu estava andando de bicicleta na praça defronte de casa. Corri, aturdido, mas não me deixaram entrar no quarto onde o corpo de meu pai ainda fervia, a cabeça decotada pela bala do velho revólver. Por que se matara exatamente naquele dia? Das mil derivações que assombravam o beijo que eu colhera, quanto de fato chegara a seu conhecimento? Como ele conseguira ter a seu alcance, apesar dos esforços da família, um revólver carregado? Foram muitas as perguntas sem respostas. E elas forçavam-me o peito a cada minuto, subjugavam-me continuamente, lançavam-me, sem cartas geográficas, por uma treva costurada com palavras indizíveis. Ali os amantes deveriam arder, deveriam arder sem termo e sem perdão, pois tudo para mim estava consumado. 

Eu jamais confiei este assunto a quem quer que fosse. Guardei-o comigo, veneno vivo no sangue. Suportava a vinda incômoda daquela imagem, o mal-estar que a sua visita me causava. A tudo suportava calado. Aos poucos, fui absorvendo uma tristeza estrangeira. Tornei-me a cada dia mais arredio e mais casmurro. Com a morte de meu pai, nossa situação financeira, que já não era das melhores após o acidente, piorou consideravelmente. Meu tio não demorou muito a se mudar de nossa cidade, alegando questões de trabalho. Passados alguns anos, também afastei-me de casa para me dedicar aos estudos. Depois de um longo tempo fazendo bicos aqui e ali, consegui arranjar um emprego que me desse condições de levar adiante a universidade. Isso me oferecia o álibi necessário, pois poucas vezes me via forçado a arrumar as malas e enfrentar o convívio com um lugar que me causava tanto desconforto. Assim, visitava minha mãe de quando em quando. 

Por mera opção, as férias de meu trabalho nunca coincidiam com as férias da universidade e, assim, eu não tinha mesmo como viajar. Minha mãe não me perdoava a ausência, no entanto. E nisso estávamos mais ou menos empatados, já que eu também não lhe perdoara o ocorrido. Em mim, pouco a pouco, se instalaram os tribunais do Santo Ofício, o pilão de mil palmatórias, algo que tentava inutilmente condenar o que já fora tantas vezes condenado. Dentro da estranha imagem daquele beijo estava a voz de meu pai, o estrondo do revólver que lhe arrancaria, sem misericórdia, cerca de dois meses depois, a memória e o medo. Diante daquela imagem tremulava o meu abandono e o abandono de minha mãe ao seu pecado. Bem ao fundo, o marulho da hora em que o afeto de duas pessoas me apunhalava. Tudo girando nas engrenagens já mortas de um beijo. 

Tão logo terminei a graduação, fiz de enfiada o mestrado e o doutorado e, tempos depois, vencido o período de interinidade, passei a trabalhar como professor efetivo da própria universidade em que me formara. Como de costume, raramente voltava à casa de minha mãe. Ela também, por outro lado, nunca me visitava. Esse distanciamento tornou-se, com os anos, insuportável. Pesava-me sobremaneira, pois não me seria difícil compreender então o quanto aquela pobre mulher padecera. A magnitude surda de sua dor. A luta contra a depressão de meu pai, contra as seqüelas do acidente que ele sofrera, contra as dificuldades financeiras que desabaram sobre a nossa casa. Contra a própria vida, que às vezes se mostra, de uma hora para outra, tão avessa e inimiga. A sobrecarga que, sem qualquer aviso, lhe caiu inteira sobre os ombros: todos os afazeres do lar, as crianças, a necessidade de complementar a pensão exígua com as costuras e o aluguel dos quartos, a miúdo com a feitura de doces e bolos de aniversário ou casamento. Uma labuta sem termo, sem um momento sequer de descanso. Por fim, em decorrência de tudo isso, a anulação de sua própria existência. A precedência dada aos filhos. A necessidade premente de esquecer o que o seu corpo jamais esqueceria, de afastar o desejo que o relógio lhe impunha, num esgar de lodo entre lençóis.

Somente agora me é possível reconhecer o quanto pode esse desejo. As escuridões que move, as muitas fogueiras que habita. Ao menino de nove anos de idade, ao menino que media aos palmos, do alto da mangueira do quintal, os minutos que migravam com as frutas para o solo escuro de sua infância, a esse menino nada foi concedido. Nenhuma compreensão, nenhum reconhecimento. Apenas um rancor sem raízes, sem conjecturas. Algo que murava a tentativa inútil de obter resposta à pergunta que a sua própria pele lhe negava. A esse menino, cegando-o a furto, o horizonte inquisitorial. A condenação a tudo o que o transcendia em sangue e sêmen. A palmatória que escondia, por dentro, trevas duríssimas de ignorância. Por que compreendemos sempre a posteriori? Por que condenamos tanto o que tão-somente nos ultrapassa?

Mas perdoar, perdoar de coração – se é que existe algo a ser perdoado -, perdoar sem rastro ou vestígio, este é um verbo que nossa condição mal conhece ou conjuga. Inúmeras foram as vezes em que tentei mudar, até mesmo com minha mãe, o modo estrangeiro com o qual procurei arrostar o mundo. Não faltaram, inclusive, conselhos e cobranças de meus irmãos. No entanto, tudo me parecia falso ou toscamente encenado. De uma forma avessa e definitiva, essa máscara tomou de mim a face antiga e não havia mais como retroceder: eu estava condenado a ser o homem distante e frio que eu não era.

Sentado agora na sala de jantar da velha casa, tendo à frente o retrato de meu pai, com seu bigode ralo e sua brilhantina, espero que de meu desconsolo desabroche o antigo menino, e seu retorno mude para sempre o curso dos dias. E os relógios todos desandem em contramarcha, e puxem da terra, pelos cabelos, a antiga mangueira, trazendo consigo o escândalo das cigarras sobre o dorso crivado de janeiros. Espero que esse retorno me salve, por fim, do olhar terrível de minha mãe, das muitas fotografias que o tempo foi colando, à revelia, como que por divertimento, no seu rosto. Nas suas mãos que lembram, quando vistas assim de perto, a terra gretada por essas secas que nunca largam a alma da gente. Olho-a sem pressa, desfiando o sisal do silêncio que nos cabe. Sua infelicidade talvez me torture, talvez me redima. De quando em quando, uma exclamação fortuita ou, se muito, um comentário sem nexo. Pouco nos falamos, essa é a verdade. E temo que tenha sido assim a vida inteira. Ah, que o destino não nos reserve jamais outra chance no mundo. A comida quente e boa nos salva do domingo. Não tem, nem de longe, o tempero insuperável de minha mãe. Sua doença não lhe permite mais lidar com a cozinha. Não lhe permite mais nada, aliás, a não ser esperar, entre muitas dores, a tão sonhada hora da passagem. Mesmo uma parte considerável de sua memória já parece ter encontrado o caminho e arrumado definitivamente as malas. Ontem a vi discutindo com seus dois irmãos, há muito falecidos. Hoje não parece estar para conversas. Fica me olhando, com uma altivez um tanto descorada, como se eu fosse um estranho. As poucas palavras escapam dos umbrais, na noite, sem resposta. Falamos para nós mesmos, em confidência. E assim, afastados, nos compreendemos.   

Publicado em inglês na revista El Portal, May Issue.