Clique aqui para baixar o texto.
“Uma onda vermelha para celebrar o dia do Canadá e eles chegam estragando tudo, selvagens por natureza, sem educação, pulando para cima e para baixo,” ela afirma, os rebaixando. “Adolescentes,” a outra mulher, mais jovem, dissera. Ela também estava com bastante maquiagem, um delineado grosso sob as pálpebras. “Temos uma história de resiliência, trabalho duro, e eles chegam destruindo tudo,” enfatizara a mais velha.
Paul fazia parte do grupo do qual elas se referiam. Ele queria se justificar, valorizando-se; não queria mais ser chamado de docinho, razão pela qual escolhera aquela galera, mais velha e mais forte – o que lhe dava uma temporária sensação de onipotência. Ainda assim, o julgavam magricela, com cara de pepino.
Ele continuou ouvindo a conversa delas discretamente. As mulheres condevam a bebedeira dos jovens no feriado nacional, desmerecendo a história da terra. Ele adorava ouvir tudo aquilo, mesmo sem saber quem elas eram. Entediado, resolveu segui-las, deixando os amigos para trás. As duas deviam ter cerca de cinquenta anos, estavam vestidas de laranja, incomodadas com o excesso de vermelho. Passaram por grandes avenidas e uma multidão de pessoas até chegarem num café meio esquecido entre sombrinhas amarelas.
As mesas estavam no pátio. Ele se sentou numa posição estratégica e seguiu ouvindo a conversa. Sozinho, se sentia verdadeiramente ordinário. Pediu uma Coca com gelo, e recebeu o contrário. Tinha horror de suco natural, a madrasta o alertara num dado momento. Essas mulheres o faziam se lembrar dela, sua face cada vez mais parecida com a dela, apesar de não terem qualquer ligação sanguínea. Aquele pensamento lhe alertou. Lembrou que a verdadeira mãe, quem não via fazia anos, estaria na cidade por alguns dias. “Em 1900, a França era um país mais populoso que o Brasil, apesar de 80% do café consumido ser de lá,” uma das mulheres havia dito.
Ele deduziu que elas eram brasileiras, uma delas dizendo “obrigada” ao comprar o café. Seu pai tinha se casado pela segunda vez com uma brasileira, mas Paul havia nascido ali, no Canada. Em casa, falava português, mas seu passado e suas histórias não envolviam aquela origem, mas outra, o que lhe dava uma sensação constante de deriva. Recentemente sua mãe de sangue havia entrado em contato. Ela morava em Ontario.
Os dois eram estranhos, mas apesar disto, Paul havia decidido encontrá-la, tentando uma reaproximação. Marieta, minha madrasta, é a minha única mãe, enfatizava para si mesmo, fantasiando uma justificativa à dupla de mulheres na outra mesa. Marieta conversava com ele sobre coisas tudo, por exemplo, o Monumento das Bandeiras, em São Paulo, uma escultura de cimento gigante, soldados andando em direção ao desconhecido e um deles a cavalo. Era uma relação sólida. Ele perguntou à Marieta se ela havia conhecido sua mãe. Ela dissera que não, sem jeito ao ouvir a pergunta.
Faz muito tempo, ela respondeu. Ele então confessou que sua mãe havia entrado em contado com ele, e ele não sabia o que fazer. Não sentia nada por ela, ela era uma pessoa desconhecida, assim como as mulheres da outra mesa. Será que também haviam sido abandonadas um dia? Provavelmente não.
Ele finalmente decidiu se apresentar. “Vocês são brasileiras?” Ele perguntou, casualmente, afastando os pensamentos indesejados da mente. A imagem da mãe viajando pelo país lhe incomodava. Ele também estava acostumado a viver entre lugares. Havia nascido no Canadá, mas seu pai o levara ao Brasil para ser registrado como cidadão depois que a esposa o abandonara. Agora era ela quem voltava. “Sim,” elas responderam. “E você?”
“Sou de dois lugares,” respondeu, mostrando as tatuagens, uma em cada batata da perna: Brazil de um lado, Canada do outro. “Meu nome é Paul, Paulo,” acrescentou, esperando ser reconhecido a partir daquele momento. “Ouvi uma de vocês dizer obrigada depois de pedir um café em inglês. Isso ocorre comigo também,” dissera, desorientado por um momento. Mas as mulheres não lhe deram muita atenção.
Gostaria de explicar que seu sonho era falar português como Caetano Veloso, que canta como quem está beijando as vogais entre lábios finos, numa melodia que sempre traz um sorriso em sua face. Algumas vezes também ele fantasia beijar Caetano Veloso. O Monumento das Bandeiras, o oceano vermelho das bandeiras, Ontario e a música brasileira, tudo aquilo o faz querer ser outro. Como conseguiria explicar aquela sensação? Não havia mais nada para dizer então perguntou se elas estavam gostando de Vancouver. Elas disseram que sim.
Ele se lembrou de um filme que vira com Marieta: “A Idade da Terra,” de Glauber Rocha, a primeira nouvelle vague que havia visto do Brasil. “O filme é apocalíptico,” ela enfatizara. Muitas vezes havia imaginado Glauber Rocha aterrissando em Vancouver, especulando o que ele iria pensar. Evidentemente que as mulheres não estavam interessadas nele, e muito menos naquele assunto.
Elas o ignoravam, passando a conversar entre elas. Ele bebeu o resto do refrigerante numa golada, sentindo a cabeça congelar, a memória de quando ligava para madrasta sozinho ou com frio, jamais imaginando rever sua mãe verdadeira um dia. Agora que havia voltado, como esquecer que ela o deixara quando tinha apenas dois anos? Ela parou de amar, seu pai havia lhe dito. Ele era muito pequeno para entender como alguém conseguia parar de amar um bebê. “Não sei mais o que dizer,” o pai havia acrescentado.
Marieta, ao saber que sua mãe estava de volta a cidade, aconselhou-o a ir a seu encontro, mas sem nada dizer ao pai, pois afinal de contas não era a mãe era dele. Ele ficaria aborrecido sem necessidade. Ao deixar o restaurante com os dedos congelados, as mulheres tagarelando sem parar, ele ligou para a mãe. Sua resposta foi de alguém que nunca houvera partido. Ela explicou que estava em Vancouver porque escolhia carnes para um açougue e eles precisavam verificar os produtos da franquia.
Ao ouvir sua história, ele se deu conta que talvez ela não tenha vindo apenas para vê-lo, o que lhe decepcionou. A raiva de ter sido deixado para trás após todos aqueles anos. Ele não queria relembrar do passado. Já arrependido, dissera que iria encontrá-la na piscina publica da cidade, já que ele ia treinar, até porque não queria mudar sua rotina por conta dela. E ao ver sua chegada na entrada principal do centro aquático, ele ficou paralisado, ela sem o reconhecer. Finalmente ele acenou ao reconhecer a jaqueta azul que ela havia dito usar.
Eles se abraçaram meio de lado, os corpos desencontrados, o tempo os separando demasiadamente. Ela segurou a sua face. Seus dedos tinham anéis gigantes. Ele mal respirava. Disse oi. Queria falar qualquer coisa para evitar buscar traços de si nos olhos dela. Talvez as bochechas fossem semelhantes. E depois o nada, o nada a falar antes de tudo. Até ela começar a falar do trabalho no açougue. Era um tema estranho. Ele imaginara que ela fosse lhe perguntar do colégio, das namoradas ou dos namorados, o que era o seu caso. Mas não houve grandes explicações ou pedidos de desculpas, apenas um breve reconhecimento: você está tão grande Paulo. Todos esses anos e Paulo sentindo seu corpo esvaziado, como se faltando um pedaço.
Agora que ela estava ali, ainda assim se sentia estranho, incompleto. Não acho que isso seja amor, ele pensara, apesar de reconhecer a felicidade nos olhos da mãe em alguns momentos. Ele tentava adivinhar se aquele encontro teria repercussões em sua vida. Na verdade, não via a hora de sair dali. A verdade é que ele não tinha ideia de quem ela era. Tira uma foto minha para você se lembrar de mim, ela havia dito.
Eu tenho telefone, você pode me ligar, ele respondera. Posso ver suas mãos, ela pedira. Sabia ler as linhas: você terá um grande futuro, dissera. Você faz parte? Ele quis perguntar, mas não o fez. Deixa-me pentear seu cabelo, ela pedira. Ele tinha cabelo comprido, e queria aparentar mais feminino, ter sensação suave no toque. É muito bonito, ela dissera. Era estranho alguém pentear seu cabelo, ele nunca o fazia. Pensava se agora o faria só para se lembrar dela.
Picanha, alcatra, coxão, carne moída, enfatizara. Essas eram as partes mais requisitadas do boi. Ele perguntara o que ela andava fazendo. “Passei uma semana no hospital,” dissera, de repente. Ele demorou a reagir. “Como?” Finalmente perguntou. “Um ataque de pânico,” explicara, com calma. “Tive um outro filho e ele morreu num acidente de carro faz alguns meses,” ela afirmara. Paul não sabia se ouvir aquilo deveria o fazer feliz ou triste. Seu pai nunca havia mencionado que sua mãe havia se casado de novo. Era como se nunca tivesse existido. “Não sabia,” é o que disse. “Eu sei. Eu deveria ter entrado em contato antes,” ela lamentara. “Ele não volta mais. Mas você sempre esteve aqui.”
Com mãos largas, ela o abraçou, enquanto ele a imaginava segurando a faca com a lâmina prateada, fatiando a carne. “Me desculpe não estar presente,” ela afirmara. Até aquele instante, a memória do seu corpo era apenas uma fantasia. “Minha mãe costumava comprar frango para matar e comer, torcendo o pescoço dele no quintal quando eu era criança,” ela dissera. “Acho que me traumatizou. Agora vejo carne morta o tempo todo. Mas não tenho medo da morte.” Ele concordou e lhe assegurou que tudo ia ficar bem, e que chorar não ia trazer o filho de volta, mas que ajudava.
Paul ficou vendo ela se afastar sem saber ao certo se a veria de novo. Em casa, seu pai perguntou a ele onde havia estado e ele disse que tinha ido ao açougueiro procurar por emprego. “Não tinha ideia que você queria esse tipo de trabalho,” o pai afirmara. “Nem eu,” ele mentira. Marieta não fizera perguntas até porque Paul não dissera nada. No dia seguinte, quando sua mãe não ligara novamente, ele ficou se perguntando se teria sido melhor nunca ter sabido sobre o filho morto, sua face como um pedaço de carne morta em suas mãos. Por vários dias chorou sem cessar até esquecer, sem saber de verdade o que fazer com tudo aquilo.
Conto publicado em inglês em The Ofi Press.