Entre os Lençóis


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Não sei como tudo começou. Minhas mãos estavam molhadas, a alga marinha caindo do balde e se espalhando pela tábua corrida, os azulejos largos da cozinha completamente cobertos. Eu as coloquei ali dentro para que descongelassem mais rápido. Mas o hanger estava desconfortável, como é mesmo essa palavra em português? A coisa que a gente segura, ela traduz. Pois é, foi quando aquilo escorregou da minha mão. Eu me aproximava do fogão quando me dei conta que estamos todos conectados, meu pulso e as algas, elas também, meus espelhos. Eu queria me esparramar pelo chão, spread out on the floor, como se estivesse morrendo.

Você sempre pensa nisso? Ela me pergunta. Na morte? Respondo. Se não fosse a dona do restaurante, teria sido demitida, afirmo, mesmo depois de ter limpado tudo. E sim, eu penso bastante na morte. Depois do que aconteceu fiquei paralisada e totalmente encharcada. Você disse que foi como se você estivesse morrendo, ela insiste. As algas já estavam mortas, e alguma coisa naqueles corpos inertes teve um efeito em mim. Eu as lavei e depois as servi, naturalmente. Que nojo. Sim, a memória ainda persiste in my nose. Um mundo perfeito, não? Se dissolver em alga, como magma? Espero um comentário dela, mas ela para de prestar atenção, amarrando o cabelo num rabo de cavalo.

Volta e meia fico pensando o que preciso fazer para ter sua atenção e me enervo quando você não me olha. Oi, você ainda está aí? Pergunto. Sim, estou aqui, mas já sei o fim da sua história. É um sonho no qual o significado é fusão, distorção. Mas não a vida real. Não é bem assim que acontece. As pessoas têm vida distintas, corpos separados, ela me instrui. Mas você deve sentir algo similar, você tem que sentir algo similar, eu insisto. Não, eu não sinto nada disto. Verdade? Verdade.

Minha imaginação é vívida, mas quando penso em alguém together, sei a diferença entre a vida e a fantasia. Onde você quer chegar com isso? Eu interrompo. No final das contas, ela diz, você limpou o chão sem morrer ou desaparecer no meio das algas, do útero, etc. O excesso de horas que você passa no restaurante sem dormir te deixa mentalmente criativa e estimulada. A única coisa que queria argumentar é que ninguém sabe onde um corpo começa ou termina, argumento. Minhas extremidades são extremamente sensíveis.

Seus dedos? Ela pergunta. Yes, my fingers, respondo. Somente quando tocam algo concreto, na vida, que tudo faz sentido. Você vendeu bastante algas hoje? Ela pergunta. Não, respondo, o restaurante é de carne vermelha. Peixe não faz muito sucesso lá e é apenas uma pequena distração. Quando olho para ela me dou conta de que já está nua. Algas marinhas são plantas? Elas vivem no mar, não? Ela sugere. Eu não gosto de cheiro de mar porque me leva a pensar quando vezes bebi além da conta. Tá de sacanagem, eu digo, admirando seu corpo. Naquele momento, sinto o cheiro do seu sexo e sei o que preciso fazer. Lamber seus lábios é muito mais prazeroso do que limpar a cozinha.

Tá tudo bem? Ela pergunta, depois que eu termino. Detesto essa sensação de formigamento na minha língua, mas não há nada que eu possa fazer. Sei que ela tem suas peculiaridades também. Isso sempre ocorro quando como demasiado. Entendo, ela diz, sentando-se na cama. Você sempre tem orgasmos? Eu pergunto. Geralmente no meio da noite, quando sonho, e não consigo dormir depois. Durante o dia é impossível, ela explica. Você faz sexo no meio da tarde? Eu pergunto. Ela me olha com curiosidade. Meu corpo fica agitado quando não estou excitada. Você sabe que horas são? Ela pergunta. Olho no telefone. Três da manhã.

Há uma televisão no quarto ao lado e consigo ouvir um anúncio sobre uma cadeira elétrica para idosos, ou seria uma escada móvel? Um dia também vou parar de andar e alguém vai ter que me carregar escada abaixo. Houve um assassinato neste quarto uma vez, sabia? Ela me informa. Eu quero perguntar se ela ainda me ama, apesar da minha incapacidade de parar o envelhecimento ou as rugas que começam a aparecer na minha face. Ama? Pergunto, sem ouvir minha própria voz até ela repetir a mesma pergunta. Ama? Fico sem expressão. Você tá falando sério? Eu repito. Bom, na verdade, não foi bem um crime o que aconteceu aqui, ela continua, mas um acidente. Mais ou menos como meu amor por você, que eu não sei definir bem ao certo o que é, mas acontece em rupturas, meio que como o som de um trovão.

Você gosta de Faulkner? O escritor? Sim. Luz em Agosto é um título bom. Estou triste. Ela está pensativa. O espaço que dividimos é ínfimo. O quarto não é muito maior que a minha pantry, onde guardamos todos os mantimentos. Por sinal, esqueci um livro de Machado de Assis lá dentro, o escritor brasileiro ignorado. Eu tive uma namorada que adorava literatura obscura, digo. Eu não sou sua namorada, ela instrui. Kafka era seu autor favorito. O cheiro do banheiro é como acetona, penetrante, desinfetante adentrando meus poros.

Como vai seu marido? Eu pergunto, esperando que ele a deixe um dia. Ela tem um sorriso inteligente, que reaparece depois que transamos. Tenho que buscar minha mãe no centro de reabilitação, digo, mas ela já está agarrada ao telefone. Não quero saber da sua vida, ela diz. Essas são as regras. Vamos falar do zelador. De quem? Eu pergunto. Na matéria do jornal, a polícia afirmou que um homem se matou neste motel. Eu achei que você tinha parado com isso, eu digo. No último lugar que fomos alguém matava bebês. Sinto muito, realmente, mas preciso entender a morte, ela justifica. Eu tenho meus vícios também, mas os seus, realmente, são fora de sério, enfatizo.

É muito mórbido pensar na morte o tempo todo, eu digo. Não é o tempo todo, só quando eu te vejo, ela explica. Eu faço você gozar e eis a morte. É a lógica? Estou confusa. Não acho a lógica importante. A morte e o sexo são tão próximos, não há como escapar, ela explica. Prefiro ser ignorante nesses temas, digo. Por que? Ela me pergunta. Por que você ama as algas mortas? Ela continua. Não é a mesma coisa, eu protesto. Não seria legal ter um encontro normal? Eu indago. Você não é normal, ela afirma. Eu não sou normal, repito.

Ela ri e aquele momento me faz mal, como se minhas entranhas tivessem expostas. Imagino uma hiena, ou um cachorro perdido que sempre vejo perto da minha casa. Eu vou buscar minha mãe no centro amanhã de manhã, eu repito. Queria ter sua vida, ela diz. Ela vai sair da reabilitação, eu insisto, ainda mais alto. Você está quebrando as regras. Sem histórias pessoais, ela reforça. Ok, digo. Estou começando a esquecer meu inglês, eu lhe digo. A verdade é que ninguém sabe qualquer língua por um tempo, ela afirma.

Verdade, concordo. O centro é entre Caravelas e Porto do Sol, perto do oceano, eu digo, mudando de assunto. Minha mãe gostou de lá. Será que eles têm algas? Ela pergunta, atenta. Não sei, respondo. Talvez você deve ir dar uma volta na praia quando a encontrar, ela sugere. E você, está feliz com seu marido? Ela me pergunta. Feliz? Eu repito. Sim? Ela pergunta. Eu gosto do jeito que ela coloca as botas no seu corpo nu e se olha no espelho, como um manequim, esperando ser vestida. Tanto faz, eu digo. Não tenho muitas expectativas.

Você acha que suicídio é um tipo de assassinato? Ela pergunta. Não sei, digo. A polícia disse que o homem estava envolvido com drogas, vendendo para crianças na porta das escolas, e que uma delas teve uma overdose, ela segue. lendo o artigo no seu telefone.

Então ele se matou, eu digo. As pessoas vivem no extremo e aí acontece merda, ela diz, calmamente. Como você pode ser tão fria? Eu pergunto. Talvez a vida seja só isso, ela insiste. A televisão está no mudo, mas o brilho das paredes faz o ambiente asfixiante. Meus dias são entediantes, digo. É isso as pessoas tristes dizem, ela comenta. Acho que ele se matou porque estava entediado, afirmo. Fico de saco de cheio também, digo. A gente acabou de transar, ela diz. Meio que transar, corrijo, prometendo melhorar numa próxima vez.

Você quer fumar? Eu pergunto, acendendo o baseado entre meus dedos. Você sabe muito bem que eu estou grávida, ela insiste. E é o balde caindo no meio da cozinha novamente e minhas pernas tremendo. Eu achei que você tinha um gozo pela morte, digo. Eu acho que a gente devia parar de se ver, ela diz, branca como uma pomba. Dentro da minha caixa de joias, guardei minha primeira aliança, que nunca usei, digo. Alguém me amou uma vez também, confesso.

Eu nunca te prometi nada, ela diz. Eu sei. Não posso continuar com esses encontros em motéis, ainda mais onde um monte de gente já morreu, eu concluo. Você precisa de ajuda com o bebê? Eu pergunto. Eu preciso de ajuda com o bebê, ela diz. Eu não sei porque você ficou branca de repente, eu digo. Não acredito que você ainda fume maconha, ela comenta. Sim, fumo, ainda mais quando chove, respondo. As gotas estão batendo forte contra a janela e eu pensando onde vão os pernilongos quando está tudo alagado lá fora.

Você tá magoada? Ela pergunta. Seria tão fácil matá-la agora, eu penso, a maconha começando a agir. O que mais gosto no seu cabelo é o brilho, acariciá-lo me acalma os nervos como a pele de um cavalo. Você se importa? Eu digo, passando minhas mãos, my hands, neles. Meu marido nunca diz nada parecido, ela afirma. Quando a gente briga, fecho meus olhos e me imagino num outro lugar, sustentando o silêncio, ela conta. Não entendo, digo. É porque não consigo falar, ela admite. Dormindo com o inimigo, afirmo.

Meu marido é minha fortaleza imaginária, ela diz, apesar de nunca lhe dizer nada sobre meus medos. Que horas são? Eu pergunto. Cinco da manhã. Eu queria ter estado na cozinha quando as algas se esparramaram pelo chão, ela diz. De certa forma você estava, eu respondo.

Eu tenho que ir, ela diz, quando o sol começa a entrar pelas cortinas. Vestida para matar, com lingerie, minha boca seca pela dela. Cegamente sugando nossos vãos, fazemos amor de novo, sem realmente nos importarmos quem éramos.

Talvez a alga nunca tenha estado lá, eu murmuro, e fecho meus olhos, adormecendo entre os lençóis. Quando acordo, ela está tomando café instantâneo num copo de papel. O silêncio continua por cerca de seis minutos até o som de um aspirador ser ligado do lado de fora do quarto. Bom dia, eu digo. Quartos como este dão a sensação de que o tempo não passa, não acha? Eu pergunto. A percepção é tudo, ela diz. Eu trouxe um livro para você, ela diz, sentando-se ao meu lado na cama.

Quem é Roberto Bolaño? Eu pergunto. Acho que ele é chileno, ela diz. Estava na prateleira do meu marido. Estava lá fazia tempos e acho que ele nunca leu. Acho que ele não gosta de narrativas desencontradas. Você quer que eu leia para você um dia? Ela pergunta. Está segurando o livro com uma das mãos e o copo de papel com a outra. A cadeira de segunda mão faz com que sua vagina pareça enorme, como se um espelho de maquiagem estivesse a refletindo em detalhes.

Seus pelos púbicos se parecem com algas, eu digo. Ela olha para baixo. Eu me sinto muito próxima de mim mesma quando a vejo nua. Um pouco como a passagem de um ônibus em alta velocidade e o vento que me bate na cara com força. O livro é pesado, e fica entre nós. Meu umbigo apenas alguns centímetros acima. Ainda estou tentando descobrir quanto tempo é preciso para ler um livro desse, ela diz. E tanta coisa que desconheço do meu próprio corpo, ela acrescenta, acariciando sua própria barriga.

Obrigada pelo livro, afirmo. Cuide do seu bebê. Pode deixar, ela diz. Posso te ligar em breve? Ela pergunta. Achei que você não queria mais me ver, eu respondo. Disse isso? Ela repete. Devo ter me esquecido, completa. Quando a alga caiu, o tempo parou para todos, então nos esquecemos, eu explico. As coisas são diferentes agora, ela diz. Eu vou ficar bem, eu digo.

Sua pele quente roça contra meu braço, feminino, num toque gentil que me faz lembrar de mim mesma. Eu a acaricio de volta. Estranhamente, Elvis Presley começa a tocar e, algum lugar do lado de fora. Não precisa chorar, ela diz. Seus olhos tão redondos quando me encaram, digo. Estão lendo o tempo, encerra, me deixando finalmente. Eu não sei se as pessoas querem realmente dizer o que dizem quando deixam um ambiente às pressas.

Entro no banheiro e sinto o cheiro de desinfetante queimar meu nariz, meus pés molhados, as poças e as algas nos azulejos novamente. Momentos depois, também saio dali e meu carro vibra contra o asfalto.

Ondas contra o muro no meio peito. Minha mãe não está num centro de reabilitação, mas eu gostaria que ela estivesse. Reclamar é o seu vício e ela a última coisa que ela quer é resolver seu próprios problemas, apenas falar sobre eles. Meu marido não sabe quem eu sou e muito menos que passo as noites sozinhas em motéis. Ele só insiste que nosso bebê fale inglês também, apesar da criança mal abrir os olhos sozinha, perdida no nosso casamento sem línguas. Essa semana ele está numa conferência em Vancouver e pelo telefone me diz que está gostando muito. A cidade, ele diz, lhe mostra quem eu sou. Verdade? Eu disse, insegura de mim mesma.

Quando chego no restaurante, o movimento é grande como sempre, e logo vou checar os pratos do dia, a salada, e muita carne vermelha. A picanha e a maminha são meus pratos favoritos. Que dia estranho, o garçom afirma, assim que a chuva para e um arco-íris aparece na janela, perto do buffet. Há uma longa fila do lado de fora. Tenho a impressão de que já vivi esse dia antes, num outro tempo. Educadamente, sigo para receber os clientes na porta, sem saber se minha pele ainda está úmida, ou se as paredes da cozinha estão derramando água do oceano. Coloco o livro de volta na estante, esperando que alguém decida lê-lo um dia, porque não sei se posso. E começo a trabalhar.

Conto publicado em inglês em Echolocation.