Olhando pelos seus Olhos

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I.

Ele está gordo e sua barriga pressiona contra a camisa polo azul-marinho. Ela o imaginara menos calvo, talvez um pouco mais moreno, como da última vez que o encontrara no aeroporto, voltando de uma viagem com a esposa. O mais estranho é a falta de viscosidade do menino. A cor do garoto é branca alva e realça os lábios vermelhos, como os de uma menina envergonhada.

“É você̂?”, ela diz, numa pergunta presa que contém o ar no fim da sílaba, dando a impressão de que vai dizer mais alguma coisa. Ao invés da palavra, prefere o gesto. Toma as mãos do homem por entre as suas e as balança firme, como se cumprimentasse um político. Terá́ ele notado a diferença no seu rosto? Ela está sozinha no restaurante.

A mãe, que sempre saía da aula de ioga a tempo para o seu almoço semanal com ela, hoje resolveu passar em casa antes porque o marido dela está com tosse e não foi trabalhar, o que atrapalhou o ritual das duas. Os dois estão juntos há seis meses, mas a mãe ainda se comporta como se estivessem em lua de mel. É o terceiro casamento desde a morte do seu pai, há seis anos.

Mas não é só́ isso. Sente-se vulnerável, com vontade de chorar, desde que saira do hospital. As emoções estão misturadas. Se, por um lado, a última coisa que deseja neste dia é encontrar alguém do passado, capaz de desvendar a verdadeira passagem do tempo, por outro, não deveria estar orgulhosa do resultado da operação? O menino a encara como se estivesse procurando por outros olhos, por detrás dos seus. Os três ficam em pé, formando um triângulo no meio do salão. Naquele instante, tem a certeza de que tomara a decisão certa ao não ter filhos nem se casar com o homem que fora seu namorado.

Se isso tivesse acontecido, teria se deparado consigo mesmo, no futuro, cuidando de uma criança insossa, de bochechas gordas, tendo as costas curvadas como uma alcova. O garoto está acima do peso. Não deveria entrar num regime? O mais estranho é que o homem, ao contrário do filho, evita olhar para ela, logo deixando suas mãos se separarem das dela como se fossem frutas caindo do pé. Parece triste. Ou será́ o formato dos olhos?

Logo em seguida começa a caminhar e se afasta dela, indo na direção de uma mesa no fim do salão, próxima a outra onde há várias cestas de pão vazias, acumuladas entre objetos que parecem vir diretamente de um depósito. Não se despedem. Talvez não queiram lembrar o passado.

A vontade dela, na verdade, é de correr atrás dele para se apresentar novamente, assegurando-se de que ele é o mesmo homem e quem sabe a reconheceu por detrás dos hematomas. Não imaginava que ia se sentir assim, uma estranha na própria pele. O passado é uma reviravolta de momentos que faz o presente imperdoável. O ex-namorado sequer diz o seu nome e é agarrado por ela como um peixe pelas garras. Ao mesmo tempo quer ser evitada, como se a plástica fosse um tipo de vergonha que agora carrega debaixo dos olhos, um inchaço. No fundo também quer ser vista pela sua nova imagem, jovem, bela, bonita e rejuvenescida.

Respira fundo. Precisa mudar de foco e de posição. A imagem do homem atiça a sua vontade de ser observada, como se estivesse diante de um espelho. Tenta controlar esse desejo de ser vista por outro qualquer, mesmo se possivelmente esse fosse um antigo namorado. Decide, então, concentrar-se na mãe. Pega o telefone e lhe manda uma mensagem, cadê̂ você̂, enquanto checa os updates no Facebook. O jeito é esperar o tique-taque dos segundos, a sensação de que sua pele se estende a cada minuto, num tempo interno que nunca deixa de ressoar.

Ela olha uma última vez para o estranho antes de mudar de cadeira, como se precisasse se despedir de algo, de outro tempo. Ele parece perdido, num canto do salão. O filho brinca com o celular, e volta e meia olha na sua direção.

II.

Sentado ali, numa área restrita do salão, ele sente que pode respirar fundo. Não sabe exatamente de onde conheceu aquela mulher. O filho, magnetizado, encara a estranha, ora sim, ora não. Ele, por outro lado, fica lembrando as marcas do pescoço da moça, que aparenta ser mais velha do que ele, e apresenta manchas roxas sobre a pele, como se tivesse acabado de ser submetida a uma operação. O que faria ali, em tal estado?

A feiura da moça o faz pensar no seu próprio corpo. Desde que perdera o emprego, havia engordado cinco quilos. Já́ sente o excesso de peso nas roupas, e a iminência de alguém conhecido por perto o aterroriza, mesmo se desconhecida ou aparentemente de um passado distante. Entretanto a moça parecia feliz em vê-lo.

Atualmente temia ser observado, principalmente pela própria esposa. Precisava entrar num regime, mas estava sem força para começar. O filho, menos incomodado com a aparência do que ele, pede ao garçom um hambúrguer com batata frita. Ele hesita, mas acaba escolhendo o mesmo prato. Deveria se conter, como os antigos companheiros de trabalho, que comiam frutas, na hora do almoço. Era difícil, principalmente enquanto estavam hospedados naquele hotel.

Se a esposa não o tivesse convidado, talvez poderia ter começado a dieta ainda essa semana. Mas era uma conferência importante, ela ressaltara, comentando que os controladores de voo do mundo todo estariam presentes. Ela tinha sido selecionada pela empresa onde trabalhava e ganhara a hospedagem. Apesar de morarem na cidade, resolveram aceitar o pacote. Era para ser uma segunda lua de mel, apesar do menino não se desgrudar dele. No fim das contas, está se tornando uma babá, desde que começou a passar mais tempo em casa.

O mais surpreendente de estar perto da criança era perceber a sua falta de escrúpulo. Seria isso o nome daquele comportamento? O menino olhava sem piedade para os outros, demonstrando friamente o seu julgamento. As crianças são mais felizes, porque podem pensar o que quiserem nessa idade, ele concluíra. Mas o menino nunca dizia nada. Seria ele um retrato de si mesmo?

O garçom se aproxima e ele pede um suco de tomate temperado. Suco de tomate não engorda, engorda? Quer perguntar para alguém, mas para quem? Lembra-se do corpo da esposa, magérrimo.
Hoje pela manhã, quando ela acordara cedo para fazer ginástica na academia do hotel, ele notara o osso pontiagudo na curva da sua cintura.

Diferente dele, ela não acumulava gordura. Ele ficara dormindo, ou fingindo dormir, enquanto observava ela separar a roupa que vestiria depois, sua saia comprida, preta, pendurada na cadeira. Era aquela que lhe marcava os quadris, e lhe dava uma postura ainda mais alinhada. Junto dela, uma blusa de alta costura de seda pura, cor de rosa, garantindo um ar professional independente.

O que os outros deviam pensar dela? Exemplo da modernidade, uma mulher que não precisa de marido, solta, pronta para conquistar o mundo. Era isso que ele pensava dela? Só́ sabia que, quando se deitava na cama, ele tinha a impressão de que precisava pedir licença para estar ao seu lado.

Estava deprimido? Era como se sentia. Pelo menos não bebia mais. Quando ainda trabalhava na empresa de biscoitos de polvilho, costumava beber cerveja toda vez que saía da academia, localizada no mesmo prédio. Era advogado, mas não mais. Precisava reagir, sabia disso. Era uma questão de trabalho interior o que precisava naquele momento, não apenas exterior. Força de vontade. A empresa tivera um desfalque familiar e ele fora despedido.

A moca havia mudado de posição. Quem era ela? Talvez pudesse ser alguém simpática. Sentia falta de conversar com alguém simpático. A esposa perde a paciência sempre que precisam estender o assunto para algo fora da agenda oficial: filhos ou trabalho. Quando o hambúrguer chega, ele sente aflição diante do prato repleto. E culpa o filho, que nunca consegue comer alimentos saudáveis. O vício traz uma vontade avassaladora de devorar a carne e o queijo derretido, tudo de uma vez. Abre o ketchup e entrega ao filho, que parece paralisado, observando-o. Não sabe por que o menino lhe olha tanto.

“Que foi?”, pergunta.

O menino balança a cabeça e depois pega o seu telefone, que está em cima da mesa.

“Veja só, é um caminhão com água potável”, o menino responde, abrindo uma página da internet de redistribuição de água no estado.

“E o que tem isso?”, o pai pergunta, confuso. O menino não diz nada e eles continuam comendo em silêncio.

III.

“Minha filha, aquele não é o seu antigo namorado, dos tempos em que seu pai era vivo e achava que você̂ ia ter uma família enorme, como os parentes do lado dele?”, a mãe pergunta, quando percebe que o restaurante está vazio.

A filha está um pouco lenta, demora para responder. Como mãe, quer lhe oferecer alguma ajuda, nem que seja com palavras. Está começando a sentir uma ardência na pele, deve estar impressionada com as marcas no pescoço da filha. Além disso, a potência do ar-condicionado no ambiente a oprime. Ou seria algo mais? Não queria ter pena dela, mas, indigestamente, era isso o que sentia. A operação não ia fazer milagres e ela voltaria à antiga melancolia, reclamando da solidão e da falta de propósito da própria vida.

Mas isso não estava certo. O que fazer com a sua alegria de viver? Deveria anular-se? Sabia que por enquanto não deveria contra à filha sobre a decisão de viajar para o exterior com o marido. Ele iria pedir uma dispensa do trabalho, e os dois alugariam um apartamento em Miami, onde passariam uma temporada. E a filha, ficaria bem sozinha? Mas não podia abdicar dos seus desejos, da sua vida.

“Você está pensativa, mãe,” ouviu a filha perguntar.

Era preciso inventar um assunto. Apesar de encontrar semanalmente com a filha, às vezes se sentia vazia na companhia dela. Talvez se preocupasse em excesso, talvez ela nem fosse tão infeliz assim. É difícil adivinhar os desejos do outro. Passara muito tempo preocupando-se coma filha, se ela teria uma boa vida, embora isso também fosse sorte, em grande parte.

Elas comem abacaxi de sobremesa e na hora do café́ a filha pede um chocolate para acompanhar. Apesar de ter feito uma lipoaspiração na barriga, o excesso de gordura ainda está lá, fruto dos excessos alimentares. Usava um vestido azul com bolas brancas e uma jaqueta preta, que realçava as marcas da cirurgia.

A mãe já nem se lembrava do que conversaram no almoço. Queria chegar a tempo na embaixada e não podia contra para a filha que teria uma entrevista a fim de tirar o visto para os Estados Unidos. Que desculpa daria para não a acompanhar até em casa? A filha não pode dirigir, mas talvez aceite voltar sozinha se ela inventar que vai fazer umas compras no supermercado para ajuda-la no jantar. E agora, o que dizer?

Para a sua surpresa, todavia, a filha diz que vai passear no shopping sozinha. Em outra situação, teria achado estranho, mas, como está atrasada, enfatiza que talvez fosse bom para ela se distrair, comprar umas roupas, aproveitar que agora está de corpo novo para se embelezar um pouco mais. Não está cansada? A filha, que ainda está com dores, responde: “Pode ser, mas o que quero mesmo é ficar quieta.” Parece desligada. Seria em função da anestesia?

O manobrista chega com o carro logo depois e ela ainda insiste com a filha.

“Você tem certeza de que não quer companhia? Você ainda está muito fragilizada, minha filha.”

No entanto ela nem parece interessada no seu destino. Vai andando lentamente na direção do shopping, olhando para trás como se estivesse esquecendo algo no restaurante, que ainda estava vazio, apenas o tal homem e a criança sentados numa mesa ao fundo.

A mãe agora se dava conta de que a filha não lhe respondera. O tal rapaz no restaurante era o seu ex-namorado ou não? Ele lhe parecera conhecido, mas hoje em dia tanta gente se passava como amigo… Talvez seja melhor assim.

Ela se apressa, porque não quer chegar atrasada na embaixada. Olha-se no espelho e sente alívio por não ter marcas no rosto, apesar das rugas. Usa muitos cremes, já é o bastante. Fecha o vidro, pois sente as gotas de chuva nos braços. Não estava esperando uma tempestade. Não via a hora de estar em Miami, bronzeando-se no sol tropical.

Olha para o céu e estranha o tamanho das nuvens. É primavera, e as chuvas de verão parecem antecipar a temporada. Não sabe como estará́ o horizonte quando voltar para casa, mas espera já estar protegida pelo conforto do pijama. Ainda precisa descobrir como contará para a filha a decisão de ir morar no exterior. Agora, após a cirurgia e o pós-operatório, tinha medo de que algo lhe acontecesse. Fantasiara que a filha estaria mais animada após a operação, mais decidida, menos apática. Mas sabe que a transformação depende de forças subterrâneas. Ela é muito jovem, ainda tem forças. Logo ficará magra e bonita, mesmo que apenas por um tempo.

A mãe dirige pela cidade e tem a sensação de que o tempo está parado. Talvez seja a cor do dia, cinza, e a miragem do asfalto quando está quente. O banco de couro do carro a faz pensar no abafamento que ocorre antes das chuvas, criando a ilusão de vapor vindo do chão, sob as rodas do automóvel. O pensamento vaga por caminhos inusitados, ela conclui, assim que entra no setor de embaixadas. Sente-se importante só por estar ali. A filha, o ex-namorado e o menino estavam longe, muito longe.

No restaurante, a passagem do tempo aumenta o número de pensamentos e fantasias na mente do menino. Ou seria ansiedade de estar ao lado do pai? Na historia que está lendo, o personagem principal reclama deste mesmo sentimento. É novo, mas sabe das coisas. Ele sente isso também, ansiedade. O hambúrguer, parado no seu estômago, dá sinais de indigestão.


IV.

Era difícil ser filho único naquelas circunstâncias. Se ele tivesse um irmão, talvez pudesse se ocupar conversando com ele. Na escola, ficava pensando no pai, no que ele estava fazendo em casa, sozinho entre os móveis e a cozinheira. Não sabia o que pensar de um pai desempregado. Tivera vontade de defender o pai, dar a sua versão da história para a mãe, quando ela o acusara de estar deprimido: o pai estava de férias porque precisava descansar.

Não gostava de ver nenhum dos dois triste, mas a verdade é que se sentia mais confortável com a mãe. Mas, naquele momento, o destino os aproximara. Antes, mal conversava com o pai. Agora o encontra sempre que volta da escola. Ali, no restaurante, via repetir-se a mesma situação de casa, o silêncio, e certo marasmo, ocupado pela comida. Era sexta-feira, e ele pensava se a cama do hotel era boa para ele se esparramar e ler um livro. Era a primeira vez que dormia sozinho num quarto de hotel, mesmo que separado dos pais apenas por uma porta.

Estão parados na mesa do restaurante há alguns minutos quando o pai pede a conta, coincidentemente no mesmo momento que a outra mesa, da moça que segurou as mãos do pai como se conversasse com o padre.
“Vamos ao cinema?”, o pai lhe pergunta, andando até a saída, apontando na direção do shopping vizinho.

Demora a responder, porque nunca foi ao cinema com o pai em pleno dia de semana. Não sabe se é permitido. O que a mãe iria pensar?
Saem do restaurante e o pai anda lentamente, como se estivesse cansado. A tal moça desconhecida anda um pouco à frente, mas logo desaparece, ou ele se esquece da sua presença. Tenta puxar conversa com o pai, mas ele parece apático.

“Você̂ quer jogar videogame antes do cinema?”, pergunta, animado com a possibilidade de ter o pai como amigo.

O pai diz que não, não tem paciência com jogos eletrônicos, mas que ele pode antes de o filme começar.

“Então eu posso ir?”, ele pergunta, só para estender a sensação de intimidade. Mas a pergunta cai no vazio.

Quando chega à sala de videogame, vê o pai parado na fila do cinema para comprar ingressos. Sente uma vontade de puxar conversa, de dizer o quanto o ama, de um jeito que nem sabe explicar. A sensação de proximidade lhe causa angústia, é o que personagem dissera, ele lembrava agora. Compra uma ficha com o dinheiro que a mãe havia lhe dado, e para diante do jogo preferido, uma corrida de carros. Demora a começar a jogar. Gosta de ter a sensação de prazer, do momento antes do jogo.

Olha para o lado e vê a moça do restaurante, aquela com marcas no pescoço, parada numa loja com várias bolsas na vitrine. É o meu jogo preferido, ele diz para si mesmo, quando se senta na posição do motorista e segura a direção com toda a força. O pai está sentado no banco e não nota a presença da conhecida. O menino enfia a ficha na máquina e os seus olhos se enchem de uma lua vermelha, esmagadora.

Conto publicado em Crack the Spine e em Desejos Submersos