Seguindo seus Passos

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A reforma da casa está em pleno vigor. Shane pisa nos restos de cacos de vidro no chão e ouve os inúmeros pedaços serem quebrados ainda mais sob seus pés. A obra continua apesar do feriado. A cerca da casa terá lanças individualmente selecionadas por ele na loja de construção.

Ele é responsável por tudo que é feito ali, e gosta do trabalho manual.
Ainda há muita coisa a fazer nos próximos anos. Naquele momento, tinha problemas com o revendedor de telhas.

Aparentemente, a marca que queria tinha saído de linha. O modelo que desejava lhe lembrava a infância, a casa dos pais, um telhado cinza. Era uma quantidade enorme de detalhes, uma vez que a casa tinha quatro quartos.

Depois de finalizar o último recorte de grama artificial na entrada do jardim, ele entra em busca de uma cerveja. Restam apenas três dela no interior da geladeira além da caixa solitária de pizza do último fim de semana sob uma das prateleiras.

Quanto tinha decidido antecipar sua mudança, não pensara que teria que correr tanto. Agora só faltava um mês a mais no apartamento alugado. A cerveja tem gosto de baunilha, sua preferida. Não se importa com a solidão.

Com esse tipo de trabalho, é muito difícil conhecer pessoas. Está sempre na casa de alguém, trabalhando sozinho. No bairro onde fica a casa que comprou, a maioria das pessoas tem famílias e joga futebol no quintal.

Ele termina a bebida com uns últimos goles, tira as botas e sobe pro segundo andar para tomar uma ducha. Seria bom ter alguém ali, lhe ajudando a organizar as coisas. Mas a fantasia dura pouco. Nunca permitiria outra pessoa tomando decisões em seu nome.

Celia, com sua beleza jovial, cabelo artificialmente vermelho e corte moderno, aparece em seu pensamento, o que lhe deixa subitamente ansioso.

Ele a conhecera na academia e foi só depois, no supermercado, que percebeu o impacto que ela lhe causava. A água está fria. Ainda não tinha conseguido resolver essa questão. Se veste com uma camisa polo vermelha e se alegra com a possível mudança.

Todos os quartos estão prontos, com novos pisos de madeira e armários. Ele tinha comprado a casa em muito mau estado, e pouco a pouco estava reformando os cômodos, o telhado, e também a piscina.

Precisou lidar com a ansiedade e o desejo de fazer tudo rápido, imediatamente. Ao amarrar a toalha na cintura e passar a mão nos cabelos, sente as entradas aparecendo. Estresse, sim, mas também velhice.

Pelas ruas, os protestos contra o aumento das passagens de ônibus e a corrupção o assustam. Há longos engarrafamentos. No dia anterior, no trajeto até a academia, o clima estava mais ameno.

O ambiente laranja e a companhia da garçonete na cafeteria ajudaram a deixar o clima mais leve. Ele a conhecia há muito tempo. Ela era casada com um russo e haviam imigrado para o Brasil fazia alguns anos.

Mal falavam português, e toda vez que o via, aproveitava a oportunidade para praticar o idioma.

“Olá Shane,” ela diz, lhe entregando o cardápio apesar de saber que ele sempre escolhe a mesma coisa.

Conversar com ela lhe dava prazer. A bebida antes do treino era uma vitamina com proteína e carboidrato, essencial para que houvesse queima de gordura e aceleração do metabolismo.

Gostava de músculos, ainda mais agora com a obra da própria casa. Durante a semana cuidava da casa dos outros, e no fim de semana, da sua. Ir para a academia malhar era a sua religião, sua paz de espírito.

Ele pergunta à garçonete como vão as aulas de português e ela comenta da dificuldade de memorizar os tempos verbais. Eles ouvem gritos vindo do lado de fora.

“As coisas estão uma zona,” ele diz, ao que ela responde: “A vida é imprevisível.”

É quando ele nota a presença de Celia pela primeira vez fazendo alongamento. Ele gostava de observá-la dali. Ela parece pressentir seu olhar pois imediatamente lhe olha de volta, através do espelho.

Seu exercício favorito era rolar sobre a bola de Pilates, trabalhando o abdômen. Ela repete cinco vezes o mesmo movimento. Ele não é o único que lhe olha.

Ela tinha longos cabelos castanhos e cílios postiços, usando um macacão de lycra e cores vivas, brilhantes, que delineava todas as curvas do seu corpo.

Outros homens desfilam ao seu redor, conversando ocasionalmente. Um senhor esperava pela bola.

“Você quer usar,” ela pergunta. “Sem pressa,” ele responde.

Shane vai ao banheiro se trocar e vez ou outra cruza com ela também. Suas tatuagens lhe atraem, palavras cobrindo os braços.

“Nunca vi isso antes,” afirma.

“É muito comum de onde eu venho”, ela justifica.

“Acabei de chegar no Brasil.”

Era um ambiente amigável, as pessoas conversavam sem compromisso. Ele queria convidá-la para sair. Mostrar a obra da casa. Enquanto fantasiava uma forma de faze-lo, Celia desaparece sem lhe dar qualquer chance de dizer alguma coisa.

Eventualmente, a conversa imaginária desaparece da sua cabeça, e ele segue com seu dia, parando no supermercado orgânico antes de voltar para casa. O apartamento que morava agora estava entulhado de caixas.

Não queria vislumbrar outra noite comendo pizza, iria cozinhar algo saudável. Estava na fila com um pedaço de salmão fresco, alguns brócolis e batatas, folheando as revistas de fofoca enquanto esperava sua vez.

Foi quando ela surgiu por detrás dele segurando o leite em pó nas mãos.

“Você de novo,” ela afirma, como se estivessem recomeçando uma conversa inacabada. Imaginou-a segurando seu filho ou filha no colo, enlaçando-o pelo outro braço como fazem as esposas apaixonadas.

Ela explica que estava sem leite, caso ele estivesse interessado em saber.

Ele paga a conta e se demora para voltar para o carro. Observando-a de longe, não tinha a intenção de segui-la, mas era como se já o estivesse fazendo. Continuou atrás do seu carro, se convencendo de que estavam indo na mesma direção.

Depois de vinte minutos, ela para perto de uma casa de subúrbio. Havia um SVU na frente e algumas cadeiras simples na varanda. Minutos depois dela estacionar, um homem sai de dentro da casa e vem ao seu alcance, lhe deixando um beijo apaixonado enquanto ela lhe entrega o saco com as compras.

A luz interior do carro de Shane, há alguns metros da casa, parece demasiadamente clara de repente. Não havia tristeza ou mágoa, mas uma súbita sensação de amplitude.

“Boa noite, senhor, posso ajudá-lo?” O homem pergunta, se aproximando da janela do carro, mostrando-lhe uma identidade de oficial.

Foi quando Shane se deu conta do tempo que tinha gasto parado ali: fazia cerca de meia hora. O homem era segurança particular, e fazia rondas no condomínio.

Shane explicou que tinha acabado de deixar um amigo em casa e tinha se distraído com o telefone. O guarda se desculpou e informou que era apenas uma verificação de rotina.

Depois de um longo dia, retornando para o apartamento, Shane se pergunta se voltará a ver Célia na academia segunda-feira. No caminho de volta, nota também que as manifestações nas ruas estão perdendo força.

Um poste de luz depredado, uma agência bancária coberta de piche, uma lata de lixo queimada e lixo nas calçadas são alguns dos danos visíveis à cidade. As imagens na televisão mostram um país revoltado. Nada semelhante havia acontecido desde o golpe militar.

Ele pensava na obra da casa, nas telhas atrasadas, e na sua queda de cabelo. E se perguntava, se eventualmente, Celia também se sentia insegura em relação ao futuro.

Conto publicado em inglês em Indiana Voice Journal