Amantes até o Fim

Clique aqui para baixar o texto.

Amantes até o Fim

Abro a gaveta e encontro um pedaço de mim: sapatos de uma outra época, cano alto verde, misturados entre alguns livros. Os objetos me assustam. Recordar petrifica. A passagem do tempo atormenta. Não consigo controlar os sentimentos. Antes que possa resistir, o passado está de volta ao presente. Lembro-me quando ganhei do meu pai todos os livros da coleção Vaga-Lume. Presente de aniversário. Numa tremenda ansiedade, mistura de excitamento e temor, quis ler tudo ao mesmo tempo.

Não consegui; a pilha de livros representando o que já naquela idade, não mais que dez anos, transbordava: a complexidade das emoções humanas, a tragédia deste material. Obsessiva, minha criança buscava controlar o tempo. Na pele tão jovem, se frustrava com tamanha impossibilidade: segurar a vida entre as mãos, os minutos vividos e sem retorno. Esta dinâmica, vale dizer, a durar por toda uma vida. Ou apenas um segundo. Hoje, de novo, o tempo a me surpreender com a sua presença, encorpado nos velhos sapatos e livros. Me olhando de soslaio, como quem pergunta: ainda tens medo de mim?

Sorrio. Os sapatos nem são assim tão importantes. Mas considerando a minha hesitação, compreendo que adquiri certos traumas, entre eles o receio emocional de reencontrar algo antigo, rememorar cheiros e lembranças. Enfim, uma paralisia generalizada por saber que logo depois pode chegar um vazio, uma experiência do que é inconstante. Evitar estas faltas participantes do cotidiano é ainda pior, eu sei, pois elas constituem um silêncio necessário e estruturante. E que só se conhece depois de alguma experiência emocional forte, a morte de qualquer coisa importante, seja ela real ou simbólica – o fim de um período da vida. Isso traz uma quietude, um certo lamento interior. Uma espera, sabe-se lá por que. Por outro lado, uma grande oportunidade: refazer a vida, o olhar subjetivo.

A partir de qualquer coisa: a visita inesperada de um beija flor numa manhã fria de outono, antes imperceptível, em busca de um sugo doce do verão, por exemplo. As árvores, as estações, as conversas soltas nos mercados. E claro, os fantasmas. Porque no meio do caminho há sempre um sapato, um livro, ou mesmo uma pedra, como já dizia Drummond. Estes que são repletos de alegrias, dores e tristezas – num entra e sai de emoções e mágoas; porque há sempre um pouco delas. As memórias, os pedaços de desejos não realizados, as expectativas não vividas, revividas no presente, fazem de nós quem somos.

Sou tudo isso. E também saudade, de mãe principalmente. Do seu jeito doce e carinhoso. E que, ao longo da vida, me ensinou o que hoje cultivo em mim. Acreditar no que não se pode ver. Ter fé. Os sonhos, mesmo que não se realizem como se imagina, mas que movimentam a vida.

Por isso te peço licença, mas vou vestir meus velhos sapatos e reler o livro da coleção infantil. Dar uma volta pelo passado. Reencontrar minha mãe me segurando no colo. Ver nos olhos daquela criança que fui um pouco de mim, mas também da minha sobrinha. Me emocionar com o mistério disto tudo sem ter vergonha das minhas lágrimas.

Andar livre, embalada por todas as mãos que um dia me acariciaram e tocaram com carinho. Farei isto. Lançarei estas sementes. Para que na colheita cotidiana seja capaz de encontrar os afetos necessários, venham dias felizes ou tristes. Neste acordo que eu e você, tempo, traçamos, amantes até o fim.

Conto publicado na revista Adelaide Magazine.