Telegrama

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Conto de Iacyr Anderson Freitas.

Tradução para o Inglês de Désirée Jung.


E eis que naquele dia a folhinha marcava uma data emcaracteres desconhecidos. Uma data ilegível e maravilhosa.

Mário Quintana


Dois dias de espera e lá estava eu de volta à portaria do hospital. Um azedume daqueles na garganta. Indicaram-me uma porta bem ao fundo do corredor. À frente desdobrava-se uma sala estreita e úmida. As pessoas se espremiam nos bancos. Mal assomei à entrada, olharam-me com uma curiosidade também um tanto descorada, que combinava bastante com o desconsolo do local. 

De início fiquei sem jeito e acabei me encostando ao batente da porta. Só então percebi, ao fundo, o guichê de atendimento. Minha missão ali era mínima. Apenas retirar o resultado do exame. Mas eu não tinha forças. Seria uma provação extrema percorrer aquele oceano de bancos e gentes, em busca de algo que me aterrorizava. Fechando os olhos, eu procurava encontrar a terra prometida. Mas tudo em mim era de um silêncio sem solfejos.

Aos poucos fui percebendo que, se não me precipitasse contra o guichê, seria impossível atravessar aquela sala. Não haveria escapatória, portanto. Urgia enfrentar, desarmado, cada um daqueles olhares. Todos guardando dentro de si, como milhares de sinos sucessivos, mensagens que jamais seriam lidas. Tomei-me de uma força dolorosa e segui caminho entre as pessoas. Era uma caminhada de muitos anos, uma caminhada que começara talvez antes de meu nascimento e que eu deveria cumprir sem a menor hesitação. 

Ao chegar ao balcão, não tinha mais palavra. Com as mãos tentava afastar cada um daqueles olhares. Além do vidro, uma mulher media o calor da tarde. “Vim buscar o resultado de um exame.” A mulher parecia não compreender. Retirei do bolso o canhoto da requisição. “É para um amigo”, disse, em tom quase confessional. Até hoje não sei por que falei daquela forma. Por que menti? Não seria mais simples deixar de dar explicações? 

A mulher demonstrava entender cada centímetro daquele pântano. Cada fração íntima da minha mentira. Dentro de mim, forçando-me ao extremo, uma agitação vigorosa. Algo que me lembrava, diante de quase todas as situações, que um homem não podia mesmo agir em nome de si mesmo. “Houve um pequeno problema: o resultado ficará pronto amanhã. Depois das cinco horas.” Guardei o canhoto e tratei de abandonar o local.

O sol estava íngreme. Foi difícil atravessar a praça e pegar o caminho de casa. Quando cheguei, fui me libertando das roupas e entrando logo para o banho. A água fria era um batismo, uma libertação do incêndio que tomava os quatro cantos daquela tarde. Que dia seria hoje? Não fazia idéia. Estava sozinho no pequeno apartamento e não tinha como mandar notícias nem dinheiro para meus pais. Eles também não sabiam que eu estava desempregado havia seis meses. Sequer podiam sonhar com essa história de exame. E, o mais grave, meu pai estava doente e talvez precisasse de uma cirurgia um tanto quanto delicada. Podia ser internado a qualquer momento. Em decorrência da sua idade, caso tivesse mesmo de ser operado, escassas eram as chances de sucesso.

Estava pensando exatamente nisso quando soou a campainha. Tomado por um estranho pressentimento, fui abrir a porta. Lá estava o carteiro, agitando nas mãos um telegrama urgente. Decerto que acontecera o pior com meu pai, foi o que me veio à lembrança. Sentei no chão e olhei com assombro o envelope. Faltava-me coragem para abri-lo. Esperei mais alguns minutos, o papel apertado contra o estômago: eis que não será mais possível ocultar o que me sangra.

Soltei o grampo que prendia o envelope. O calor parecia tomar a sala e o mundo. Entretanto, como descrever, como resgatar a surpresa que tive ao ler aquele telegrama? O meu espanto diante da velha fórmula, da frase feita, do lugar-comum que me fustigava com seus votos de “feliz aniversário e muitas felicidades”? Do fundo daquela tarde fui içando as pequenas engrenagens. Os novelos mínimos. Era o meu aniversário. Como pude me esquecer? Um vazio ainda maior se avizinhava. Passo a passo forçava-me os ossos todos. Para meu alívio, o pior ainda não tinha acontecido, falei baixinho. Agora eu estava livre, definitivamente livre para me agarrar àquele dia.


Conto publicado em inglês na revista literária Fatal Flaw.