Intimidade

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Renan tenta fechar os olhos para escapar a repetição. É um homem velho agora, ainda assim não consegue controlar o impulso, seus braços ameaçando o filho após a discussão. Quando isso acontece, ele se sente sem propósito. Os sentidos de toda uma existência retornando aos seus pensamentos e ele precisando dar conta deles: o funeral do pai, as memórias. O homem tinha o hábito de lhe dar surras quando chegava em casa depois de assistir às lutas na arena, numa espécie de amor.

Não é realmente um ataque, e sim uma explosão. Maura percebe que o marido está nervoso e perde as coordenadas, acusando o filho já crescido com palavras rudes. Ele não quer que o menino se divorcie. “Mas ele é um homem feito,” ela tenta argumentar. O sogro já morreu, mas as cicatrizes permanecem no corpo do marido, que até hoje guarda a imagem do homem como um troféu. Sua esposa não sabe quanto tempo isso vai durar. Acha que com o tempo Renan se sentirá aliviado.

Seu pai é um idoso agora e mostra desequilíbrio. Marco quer sua amizade, mas Renan não lhe aceita: seu jeito de ser, suas escolhas. A foto do avô está pendurada atrás da porta do escritório, para que seu pai possa se lembrar das regras, do casamento, do trabalho, dos filhos e da carreira. Marco já tentou isso antes. Casou-se, trabalhou em banco e foi obediente ao longo dos anos. A verdade é inevitável quando seu corpo o trai com um desejo proibido por homens.

Naquela manhã, de forma obtusa, seu pai o ataca, dizendo que sua decisão de se divorciar é irracional, palavras nostálgicas se referindo às regras do velho, “família, trabalho e sociedade”, tudo isso inflado pela morte do avô. Após os disparos, Renan parece vazio, como se a discussão não importasse mais.

Num esforço de passar o fim de semana com o filho, Renan perde a paciência. Talvez se tivesse partido logo após a cerimônia, o conflito teria sido encerrado. Cada um sabe o que faz com a própria vida, pensa Renan, arrependido de ter gritado com o filho. Maura mima o menino, mas isso não justifica suas explosões tardias. Renan se considera um homem respeitado pela comunidade, e a modernidade do filho lhe causa repugnância, sem vínculo com ninguém.

Ele não sabe exatamente que tipo de vida seu filho leva, mas teme sua falta de disciplina. Maura protege o menino desde a adolescência e Renan se sente impotente. A morte do pai o enfraquece, talvez por não poder ter o mesmo poder sobre o filho. Nesse ínterim, Maura está na cozinha preparando o jantar e Marco Antônio na sala mexendo no celular. Ele não consegue ficar parado, ainda parecendo um menino, apesar de já ser um homem maduro. Renan sempre teve a impressão de que o filho e sua esposa dividem um mesmo espaço – privilegiado e seguro – quando estão juntos no mesmo ambiente. Maura considera difícil participar da intimidade de Renan e Marco se apega a ela.

Maura e Marco passam muito tempo juntos quando o marido ainda está na ativa no exército, passando grande parte do tempo no quartel, dando ordens. Em casa, ele apaga em frente à televisão, um homem de poucas palavras, que gosta da privacidade do seu espaço silencioso. Com a aposentadoria, sua autoridade muda de foco e reaparece em momentos inesperados, como quando ele conversa com o filho sobre sua vida pessoal e quer controlá-lo.

Momentos depois, quando o jantar é servido, a estranheza da família se dissipa. Maura se sente resignada ao lado do marido e do filho. Ela lava a louça e tenta não mencionar o divórcio novamente. Seus movimentos são lentos e sua mente divaga. Quando vai para a cama sonha com uma família quase feliz em algum lugar do mundo, porque a perfeição não existe. No dia seguinte, Bruno aparece para visitá-los.

Sua esposa é muito católica e acredita na sua amizade com Maura. A Igreja precisa de doações. Bruno ainda fuma e bebe, e isso preocupa sua esposa, que reclama. É o único amigo que o marido ainda mantém do exército. A esposa tem uma vida de muitos eventos sociais. Maura se levanta e começa a andar em círculos, um hábito dela. O amigo, sempre tenso, fuma o mesmo cigarro desde a adolescência, apesar de ter sofrido um infarto.

O céu está rosa e o fim da tarde traz consigo vestígios de letargia. Marco explica que está ali por causa do funeral do avô. A leveza do filho o protege das amarguras do ambiente, de pessoas que parecem viver a vida de outras pessoas.

Bruno quer mostrar apoio, sente pela perda do pai de Renan, mas é sem jeito com as palavras. “É difícil ser pai hoje em dia”, ele diz. No jantar, discutem assuntos comuns, do tempo no exército. De repente, focam na vida de Marco, no seu casamento. “Não funcionou”, explica.

O outro homem acena com a cabeça, como se já soubesse a verdade. O menino é gay, mas ninguém pronuncia as palavras, apesar da modernidade do mundo de hoje. As coisas simplesmente não deram certo e o desejo nem sempre pode ser traduzido apenas por palavras. O cheiro do caldo de galinha cozinhando no fogo é mais real. O resto é destino.

Ninguém pode apagar o que a pele sente, apenas esconda atrás de frases prontas, avalia Marco. Depois do jantar, Marco cochila na sala e acorda assustado no meio da noite. Ele sonha com um homem chamado Elis. É o nome de uma mulher? Ele não sabe.

Elis é mexicana e o pai de Marco tem preconceito contra os latinos, apesar de ser um deles. O que faria, então, se descobrisse que o filho é gay? O cabelo preto de Elis toca sua pele em um quarto escuro, uma cama de casal. Ele está segurando os pés de Marco por cima dos cobertores dizendo “tudo ficará bem.”

Quando Renan abre os olhos, a sala está escura. Ele se lembra do filho na sala, hábito desenvolvido na infância. Quando Marco era pequeno, pedia ao pai que segurasse seus pés sob o cobertor na cadeira. O menino ficava tão animado com sua presença que normalmente pedia coisas que não desejava.

“Eu quero uma limonada”, ele dissera uma vez em uma noite quente.
Renan foi até a cozinha, espremeu dois limões e trouxe de volta em um copo com água e mel. A cena retorna. O que o filho quer da vida? É opressor como pai, mas no fundo sente amor. Marco é um pedaço de si, como poderia lhe desejar mal?

Durante o dia, quer impor disciplina. Hipnotizado pela presença do filho na casa, se sente oprimido. Os sons de uma cidade no interior são diferentes. Quando morava ali, Marco era incapaz de ouvir o silêncio. Agora está dentro dele, como os sons do oceano. Os passos do avô na escada, quando vinha visitá-lo, uma espécie de ameaça, sua negatividade, cansaço e sofrimento constante: também modelo.

Ele morreu de um ataque cardíaco, quase de pé, como se sua vida não tivesse fim. Foi o amor mais difícil que Marco teve, tanta dureza, a miragem do pai. Maura tenta adivinhar o que o marido sente ao acordar no meio da noite e fica olhando o filho na sala.

A velhice traz um novo tipo de reflexão. Eles lutam, mas são muito parecidos, numa maneira reservada de amar. Ela aprendeu a viver entre os homens. Seu pai morreu muito jovem e ela quase não se lembra dele. No dia seguinte, mais animada, convida o filho para um passeio na praia. Lá fora, o sol está escondido.

Ela caminha devagar e tira os sapatos, sentindo a água fria nos pés. A imensidão do oceano é insuportável porque intransponível. Marco pensa no quebrar das ondas como um exercício de entrega. O que volta nem sempre avança, como a felicidade, tão ilusória.

Marco achava que se ele se divorciasse da esposa, seria mais feliz, mais livre. Mas não consegue encontrar o sentimento dentro de si. Tem relacionamentos superficiais, sem lugar, com homens desconhecidos. Ainda assim, ele prefere a verdade.

Em seu passeio com a mãe, encontra o pai sob o barracão de palha na praia. Seu cabelo loiro, quase branco, é ofuscante. Ele sorri quando o vê. Renan evita expor a pele ao sol e ao vento abafado. Homens ao lado de barcos de pesca, estranhos na areia, dão ao lugar um ritmo calmo. É a primeira manhã desde o enterro do pai, e isso lhe dá uma estranha sensação de alívio. Ele também está feliz que seu filho está ali.

Renan está aposentado, e a maioria de suas fantasias estão desatualizadas. O que resta é o presente, a vida de pai e marido. Neste espaço, nesta abertura, o amor é possível. A esperança é necessária. Marco é muito apegado à mãe, mas é do pai que ele mais sente falta.

Ao seu lado na praia, a presença do pai lhe dá um senso de direção. Ele queria ser pai também, um dia. Ao longe, observa sua mãe na água. Sem calção, tira a camisa e senta-se na areia, na sombra. O corpo dela sobe e desce nas ondas e ao lado uma pessoa que ele não consegue identificar. Lentamente ela sai da água acompanhada por um outro homem, bem mais em forma que o pai.

Inesperadamente, Marco fica em alerta, como se quisesse protegê-la. Espera até que eles se aproximem. O homem tem pernas cabeludas e usa um short vermelho. “Marco?” O homem pergunta.

“Seu filho é como você”, diz a ela.

O pai não se surpreende, conhece o homem, um antigo namorado de Maura. Mas Marco se sente abandonado; nunca tinha visto sua mãe na companhia de outro homem antes, exceto o pai. Quer uma explicação, numa postura tão autoritária quanto a do pai.

Mas Renan fica tranquilo, até ri com o estranho. Maura acaricia os cabelos de Marco, protegendo-o do frio, como se ele ainda fosse uma criança. Rapidamente, ele se afasta dela.

“Você não vai apresentá-lo?” Ele diz, observando o canhão tatuado nos braços do homem. Seu pai explica que eles se conheceram no exército, mas que ele teve a sorte de se casar com Maura. Todos riem. Sua mãe acha o ciúme do filho engraçado.

“Por que eu não te conheço?” pergunta Marco.

“Você era muito pequeno quando me mudei daqui,” explica o homem.

Mas ninguém parece se preocupar com o conflito de Marco, cada um contente em expandir suas próprias histórias. Nem mesmo o pai, num dado momento preocupado com o futuro do filho, parece se importar. Quer viver sua aposentadoria e admite estar em paz com a morte do avô de Marco.

Maura respira a amplitude do oceano e o brilho do sol. Apesar da morte do sogro, a vida continua com suavidade. A negatividade do velho ainda em seus ouvidos, o tormento das suas previsões negativas.

Na praia, ela tenta esquecer o passado. Carlos é uma surpresa inesperada. Diferente do marido, está em boa forma e ainda mantém o corpo como no exército. O filho, com ciúme, quer saber de tudo. Esquece que ela é uma mulher, desejada por outros homens.

O estranho se seca, veste uma camisa verde e enrola uma toalha na cintura, como se fosse um soldado da nobreza, trocando o maiô por roupa íntima.
“Anos de prática no exército”, justifica ele, diante do olhar de Maura.

“Por que a visita?” Marco pergunta, tentando parecer natural.

“Não seja indelicado,” interrompe Maura.

Carlos não parece ofendido e diz que veio para o enterro do pai de Renan. Ela parece realmente surpresa.

“Mas você não falou com a gente,” ela ainda exclama.

Renan gosta do amigo, não sente ciúme. Carlos tem o cabelo cortado rente ao crânio, como no exército. Não tem um anel no dedo.

“Você é casado?” Marco pergunta.

“Não, me casei com o exército,” diz, sorrindo.

Carlos se senta ao lado de Marco, na areia. Há um silêncio constrangedor.

Maura olha para o filho, que parece incomodado.

“Melhor eu ir”, diz Marco Antônio, impaciente, dobrando a toalha.

Renan percebe o desconforto do filho caminhando sozinho para a casa. Aos poucos, Maura, Renan e Carlos seguem seus passos, cada um com sua história e fantasmas.

“Há quanto tempo você e Maura estão casados?” Carlos pergunta, antes de sair.

“Não sei”, responde Maura, perdida no passar dos anos. “Vinte?”

No caminho de volta, passam por ruas estreitas, o rádio do vizinho enchendo o silêncio, mantendo um certo mistério. Maura acha improdutivo se preocupar com o filho, sua solidão ou ciúme.

Sempre foi assim, apegado a ela. Renan prefere esquecer a vida privada do filho, feliz na sua ignorância. Em determinado momento, tenta segurar as mãos da esposa, mas seus passos são apressados.

Durante o jantar, Marco informa que partirá no dia seguinte e os pais concordam.

Os braços de Maura estão frios quando Marco diz adeus.
“Somos só eu comigo agora”, diz, como se já sentisse a falta da mãe. Seus olhos estão tristes, muito parecidos com o do pai.

Depois que sai, Maura começa a limpar a cozinha e o mármore brilha, iluminado pela luz fosforescente.

Naquela noite, Renan segura Maura pelas costas, como faziam quando eram jovens. Está calor e ela se encosta nele, dois adolescentes encostados na pia.

Eventualmente, o filho visita. Mas eles não discutem mais.

Conto publicado em inglês em Fine Flu Journal